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Por uma Orientação Vocacional e Profissional focada na Justiça Social

“Propomos uma nova definição de orientação vocacional que inclua a problematização de relações de poder.”

Para compreender os desafios que os jovens e adultos enfrentam na sua relação com o trabalho, refletir sobre os mesmos e projetar estratégias de intervenção ao nível da orientação vocacional e profissional adequadas aos mesmos, precisamos antes de mais de analisar e compreender o contexto social, económico e político que nos rodeia. Este contexto é habitualmente descrito como complexo, marcado pela incerteza e altamente competitivo, parecendo haver consenso em relação a esta descrição. Contudo, as propostas de análise e intervenção para a preparação dos jovens e adultos no sentido de serem capazes de lidar com este contexto adverso frequentemente baseiam-se em estratégias de adaptação ao mesmo – estratégias que se assumem como sendo de empoderamento, mas que devido ao seu caráter individualizado resultam apenas na procura do sucesso individual. A mensagem subjacente é, então, este contexto incerto, inseguro, competitivo deve manter-se o mesmo. Os indivíduos é que devem transformar-se para serem eficazes e produtivos. E, portanto, as origens da incerteza, insegurança e competitividade mantêm-se. É este o mundo que queremos construir?

Isto significa que a análise deste contexto social deve ser aprofundada para o questionar, e para questionar o papel da psicologia e da orientação vocacional na construção do mesmo. Desde a II Guerra Mundial as sociedades ocidentais desenvolveram um conjunto de mecanismos que procuravam promover o bem-estar e a proteção social dos cidadãos: o Estado Providência; a procura do pleno emprego; a proteção do direito ao trabalho e a proteção dos direitos dos trabalhadores; a proteção dos desempregados… Contudo, desde a década de 80 do século XX, um conjunto de mudanças sociais têm vindo a colocar em risco todas estas conquistas sociais. As respostas ao aumento nas taxas de desemprego, pelo contrário, levaram ao desmantelamento do Estado Social através de uma desregulação da economia e da legislação laboral (ou como alguns autores propõem, uma regulação a favor das empresas e não dos trabalhadores). Em Portugal, que nos anos 80 se encontrava a construir o seu Estado Social na sequência da Revolução de Abril, estas medidas vieram mais tarde, tornando-se evidentes durante os anos em que Portugal esteve sob a intervenção da Troika, na sequência da crise financeira mundial de 2007/2008. De uma forma geral os mercados de trabalho cada vez mais se baseiam em contratos a termo, trabalhos temporários, gerando um aumento generalizado da precariedade nas camadas mais jovens de trabalhadores, contribuindo para a criação e aumento exponencial do precariado (ou proletariado precário) descrito por Standing (2011). A transferência do risco e incerteza das empresas para os trabalhadores permite maximizar a competitividade das primeiras, colocando em risco diversas formas de segurança dos trabalhadores – a possibilidade de encontrar trabalho, a proteção da legislação laboral, a possibilidade de manter o trabalho e de ter mobilidade em termos de remuneração e estatuto, a possibilidade de desenvolvimento profissional, a segurança da remuneração, a segurança da representação sindical -, contribuindo assim para vidas e existências precárias, focadas na sobrevivência diária, inviabilizando o potencial do trabalho para dar significado à vida.

Este foi o contexto para que, em 2015, a Organização Internacional do Trabalho propusesse os quatro pilares da Agenda para o Trabalho Digno: criação de emprego; proteção social, direitos no trabalho e diálogo social – bases para um desenvolvimento sustentável, mas que apenas confirmam a deterioração da qualidade do trabalho nas últimas décadas.

Qual então o papel da psicologia e da orientação vocacional? Como podem contribuir para a transformação deste contexto social, económico e político através de posturas apolíticas e de intervenções que promovem a adaptação a este contexto? A adaptação a um contexto marcado pela desigualdade e injustiça social apenas gera sentimentos de inadequação pessoal, de auto-culpabilização, de ansiedade, e contribui para um desligar social e político dos cidadãos, despolitizando-os. Assim, a psicologia e orientação vocacional têm de reconhecer o seu papel na reprodução de condições e de relações de trabalho desiguais e injustas, o que significa reconhecer o seu papel social e político e assumir a responsabilidade de promover a conscientização social e política dos cidadãos, fomentando a tomada de consciência dos fatores sociais, económicos e políticos que afetam as nossas vidas diárias, que nos constrangem, geram desigualdade social e através desta, sofrimento existencial e psicológico (Freire, 1970/1972).

Deste modo, tal como tal como Hooley e colegas (2018; 2019) propomos uma nova definição de orientação vocacional que inclua a problematização de relações de poder para construir solidariedade e contribuir para a construção de um mundo mais justo. Isto significa incluir a educação política e para a cidadania nas responsabilidades da orientação vocacional e profissional, focando-se em estratégias de empoderamento e emancipação coletivas na procura da justiça social e do bem comum através da participação social e política.

Mariana Lucas Casanova | Psicóloga com especialidade em Psicologia da educação, Psicologia clínica e da saúde e Psicologia vocacional e do desenvolvimento da carreira.

Referências
Freire, P. (1970). Pedagogia do Oprimido. Edições Afrontamento.
Hooley, T., Sultana, R.G. & Thomsen, R. (2018). A War Against the Robots? Career Guidance, Automation and Neoliberalism. In T. Hooley, R.G. Sultana & R. Thomsen (Eds.), Career Guidance for Social Justice. Contesting Neoliberalism. Volume 1 – Context, Theory and research. Routledge.
Hooley, T., Sultana, R.G. & Thomsen, R. (2019). Towards an Emancipatory Career Guidance: What is to be done?. In T. Hooley, R.G. Sultana & R. Thomsen (Eds.), Career Guidance for Emancipation – Reclaiming Justice for the Multitude. Volume 2. Routledge.
Standing, G. (2011). The Precariat: The New Dangerous Class. Bloosmsbury.

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