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O papel da abordagem STEAM na Educação de Infância

“Sinto que a educação de infância teve sempre um avanço relativamente aos outros níveis de ensino.”

Vera do Vale é doutorada em Ciências da Educação e professora na Escola Superior de Educação de Coimbra, nos Mestrados em Educação Pré-Escolar e Educação Pré-escolar/1 Ciclo.

Qual é o estado da arte em relação ao uso da abordagem STEAM na educação de infância?

Antes de começar a falar propriamente sobre o estado da arte na educação de infância, é necessário fazer um parêntesis sobre esta abordagem. Às vezes estas abordagens surgem-nos como novas, inovadoras e se formos à origem do STEM, que nos anos 90, nos Estados Unidos da América, viu o ‘A’ de artes ser acrescentado, esta surgiu com o objetivo de fazer retroceder as práticas expositivas e, consequentemente, responder ao desinteresse dos alunos pelas ciências exatas. Basicamente o que está na origem da abordagem STEAM tem a ver com isso e com a utilização de práticas que tornem esses conteúdos mais apetecíveis e interessantes para os alunos. A ideia dos projetos interdisciplinares surge como solução, o que não considero que seja nada novo e, sobretudo, nada novo para a educação de infância. De facto, pode ser uma abordagem interessante e uma abordagem alerta para os outros níveis de ensino, nomeadamente o 1 e 2 ciclos do ensino básico.

A educação de infância sempre foi bafejada pela sorte, porque contou desde muito cedo com pedagogos, e até pediatras (Montessori, Pikler…) , que lançaram os alicerces do que hoje é considerado inovador e faz moda pedagógica. Mas na realidade não é mais do que um revisitar de princípios que por alguma razão, que talvez seja importante refletir o motivo, se foram esbatendo durante um certo período de tempo e que agora voltam à atualidade educativa. Por exemplo, John Dewey já advogava que educar significa desenvolver a capacidade de pensar, de decidir sobre situações novas e sempre de complexidade crescente, pressupondo uma metodologia em que as crianças questionam, planificam, experimentam, confirmam hipóteses, cooperam uns com os outros, sempre num processo interativo, que é o que se preconiza na abordagem STEAM. Temos outros exemplos, Lilian Katz e Sylvia Chard, que em 1987 lançaram a abordagem de projeto na educação de infância, onde além de abordarem os componentes teóricos, descrevem situações de como se pode utilizar essa metodologia que, segundo as próprias autoras afirmam, foi contemporânea com o aparecimento de Reggio Emilia. Embora Reggio Emilia venha do pós-guerra, com Loris Malaguzzi, mas tenha tido notoriedade a partir dos anos 80 e 90 como uma abordagem interessante para a educação de infância.

Encontramos assim, estes olhares mais voltados para a escuta, para os interesses, para as potencialidades e habilidades das crianças, o que nos traz também uma ideia da criança competente, com agência, que enquanto se implica na sua aprendizagem, brinca, pesquisa, cria.

Esta vaga também chegou a Portugal; por exemplo, a pedagoga e poeta Irene Lisboa, ao revés do regime, até porque durante muitos anos publicou com o pseudónimo de Manuel Soares, publicou um livro, em 1943, sobre as modernas tendências, onde recolhe as ideias de vários pedagogos ( Frobel, Pestalozzi, Dewey) e incorpora-as numa inovação da pedagogia, fazendo também a sinalização da metodologia de projeto como um trabalho potenciador de uma visão de Escola em que se ensina menos e se aprende mais.

Sérgio Niza e Rosalina Gomes de Almeida, quando iniciaram o Movimento da Escola Moderna em 1965, a base era muito dirigida segundo pedagogias de Freinet, onde a tónica é também a de uma criança ativa, inicialmente mais dirigida ao 1 CEB mas que depois se alargou à educação pré-escolar. Não podemos esquecer Teresa Vasconcelos que pelos seus caminhos trilhados se dedicou à questão da qualidade e do trabalho por projeto na educação de infância, tendo trabalho com Lilian Katz.

A educação de infância, creche e pré-escolar, tem muito na sua génese esta questão de democracia, de participação, de criança ativa, questionadora, que nos chega agora com esta abordagem STEAM; não me parece que seja muito necessário estarmos a importar este modelo para a educação de infância.

Na sua opinião, quais os motivos que podem justificar este avanço na educação de infância?

Sinto que a educação de infância teve sempre um avanço relativamente aos outros níveis de ensino, até por várias ordens de razão.

O facto dos educadores poderem ser construtores e gestores do seu próprio currículo que é proporcionado pelas OCEPE, (Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar), publicadas pelo Ministério da Educação, permite que cada educador tome decisões, face ao grupo de crianças, ao local e ao contexto em que se encontra, quanto às suas práticas, dando um tom particular para que não sejam práticas monocórdicas de norte a sul do país. As próprias OCEPE têm princípios muito sólidos: o desenvolvimento e a aprendizagem como vertentes indissociáveis no processo da evolução da criança; o reconhecer a criança como o sujeito e agente do seu próprio processo educativo.

Outro princípio que considero muito interessante, e que acho que a STEAM tem possivelmente por base, é a resposta a todas as crianças, um pouco na linha das múltiplas inteligências. Cada criança quando está a desenvolver projetos pode demonstrar as suas áreas de interesse e as suas competências nessas áreas que, basicamente, é a mais valia dos projetos e é o que defende a abordagem STEAM – uma construção articulada do saber embora com ênfase nalgumas áreas (ciência, tecnologia, artes e matemática).

As próprias áreas de conteúdo, contempladas nas OCEPE, a área de formação pessoal e social, das expressões e da comunicação, o domínio da matemática, da educação física, da linguagem, o conhecimento do mundo, a introdução à metodologia científica, oferecem uma abordagem mais ampla e mais rica, digo eu, comparativamente à STEAM.

De que forma a inclusão das Artes na abordagem STEM torna esta abordagem mais completa?

A STEAM incluiu o ‘A’ das artes porque considerou que havia uma lacuna, e havia de facto, mas também porque ligou isso a uma dimensão socioemocional e aí discordo.

As Artes são uma forma de expressão, e uma das grandes lacunas da STEM era precisamente fazer foco nas áreas da Engenharia, das Ciências mas deixar de fora uma componente cultural e criativa mas, fica ainda por resolver a dimensão socioemocional.

Mais uma vez, e na minha opinião, a educação de infância está um passo, ou dois, ou três mais à frente. Até porque a educação de infância e a educação pré-escolar contam com um aliado fabuloso – o brincar – que tem sido mais utilizado em discurso retórico, pois quando se diz que a criança deve brincar o que assistimos na prática é que brincar é uma coisa e trabalhar é outra; há aqui esta divisão que às vezes até os educadores fazem. Insisto que o brincar é um aliado fabuloso, porque através do brincar a criança demonstra a sua motivação intrínseca, que está ligada também ao seu desenvolvimento e ao desenvolvimento de competências, à sua capacidade de criar oportunidades e descobertas autónomas que vão potenciar as aprendizagens.

Sublinho, a STEAM é importante para os níveis educativos seguintes, sobretudo para o 1 ciclo do ensino básico porque, muitas vezes, o que se constata é que a alegria e o entusiasmo que as crianças têm de ir para o jardim de infância é substituído pelo aborrecimento aos 7 e 8 anos, há investigações nesse sentido. As crianças permanecem sentadas, direitas, caladas, horas a fio ouvindo o professor ou a professora esquecendo-nos que as crianças têm uma energia e curiosidade que não é aproveitada e um limiar de concentração e de atenção para os conteúdos expositivos.

Na transição, entre a educação pré-escolar e o 1 CEB, é imperativo inovar mais, até porque se continua a encontrar salas do 1 CEB organizadas de acordo com um ensino expositivo, mesas e cadeiras alinhadas em direção ao quadro, não promovendo a interação entre as crianças, e neste contexto, de facto, poderá ser benéfica a abordagem STEAM, mas volto a sublinhar que não é nada de novo.

Na sua opinião, sente que o que vai surgindo em termos de inovação pedagógica é o que muitas vezes já está a ser implementado na educação de infância?

Sinto precisamente isso. O problema é que a educação pré-escolar foi durante muito tempo relegada para parente pobre no panorama educativo português. Remontando às origens da educação pré-escolar e ao surgimento desta nova profissão, educador/a de infância, a formação sempre foi a mesma que a dos professores do 1 CEB, bem como o salário (rede oficial do ME) e a conceção, que era comum ser ouvida, era a de que as educadoras apenas brincavam com as crianças. Desvalorização do brincar, e do brincar como fonte de aprendizagem, e valorização dos produtos palpáveis como noutros níveis de ensino (às vezes, o que se desenvolve com as crianças não se perceciona no imediato).

Hoje esta perceção está mais diluída, os educadores de infância são os primeiros profissionais que contactam com as crianças, fora da família, por isso necessitam de ter uma formação científica muito sólida em várias áreas do saber. Mas paira ainda esta névoa de que qualquer pessoa pode ser educador/a de infância, quando é precisamente o contrário.

Como já referi, o facto de na educação de infância cada educador poder construir e gerir o seu currículo é das maiores inovações. Ainda há bem pouco tempo foi concedido ao 1 CEB esse privilégio, a hipótese da flexibilização curricular.

Da sua experiência, o que considera premente melhorar na educação de infância em Portugal?

Com o lançamento das novas OCEPE, em 2016, já se deu mais um passo, mas na minha opinião as novas orientações curriculares poderiam ter avançado mais, sobretudo na questão do desenvolvimento socioemocional, na questão do brincar, e no reatar do contato das crianças com o exterior e a natureza. Deveriam ser repensados, os espaços exteriores que foram completamente dizimados de elementos naturais bem como o tempo passado nesse contexto.

É importante também, haver comunidades reflexivas de educadores, por exemplo, quando comecei a trabalhar, havia todos os meses uma reunião concelhia de educadores. Os educadores que trabalhavam no mesmo concelho reuniam-se na sexta-feira de tarde (tinham esse período atribuído pelo ME), para discutir assuntos, implementar projetos conjuntos, etc… isso perdeu-se com o tempo. Agora há oportunidades para reunir nos Agrupamentos onde os educadores estão integrados, mas esses espaços de reflexão muitas vezes não são usados produtivamente, são usados de forma muito burocrática. De facto, os educadores estão muito sobrecarregados de burocracia e, foram empurrados para um aculturamento ao 1 CEB, que se traduz na exigência de escrever sumários de hora-a-hora, numa avaliação sumativa das crianças, em planos de atividades descontextualizadas, no tratamento por professor aos educadores de infância, de alunos às crianças…. as palavras não são neutras. Não há tempo nem espaço útil para reflexão, para ler e discutir um livro ou um artigo. A reflexão conjunta sobre as práticas faz muita falta aos educadores e também aos professores do 1 CEB. Por vezes isso acontece em encontros, e a APEI (Associação de Profissionais de Educação de Infância) tem organizado encontros onde os próprios educadores podem apresentar e discutir as suas práticas, mas são encontros anuais, devia haver mais regularidade neste tipo de eventos.

Por outro lado, a classe dos educadores de infância está muito envelhecida; os docentes com 60 anos e mais, já não deviam estar no trabalho direto com crianças, é evidente que a sua energia esgota-se no trabalho diário, na exigência de responder à individualidade de cada criança e nas reuniões burocráticas, faltando depois para a curiosidade de ler o que vai surgindo de novo, e a área da infância tem sido muito profícua em termos de investigação, de questionar e refletir as suas práticas ou experimentarem uma nova abordagem.

Premente é também a educação das crianças dos 0-3 anos ser valorizada por parte do ME e os educadores em Creche auferirem o mesmo estatuto dos que desenvolvem a sua profissão em jardins de Infância.

Outro aspeto muito importante, é a formação inicial dos novos profissionais. Os cursos de formação de professores e educadores devem ser repensados. A sua estrutura ao arrepio de Bolonha não tem sido profícua. O mesmo se passa na formação contínua quanto a novas abordagens, sei que já existem alguns projetos nacionais e internacionais sobre a abordagem STEAM, a própria Escola Superior de Educação de Coimbra está a desenvolver um projeto internacional nesse sentido, mas é necessário proporcionar e dar condições aos docentes para frequentarem formação pois, se não se investe na formação dos próprios docentes, a inovação não ganha realidade.

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