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RedEscolas AntiCorrupção – para uma cultura de integridade em Portugal

“Desde o início, assumimos que este é um programa de formação para a cidadania.”

Ângela Malheiro é professora de História no Colégio do Sagrado Coração de Maria, em Lisboa, e Vice-Presidente da Associação apartidária – All4Integrity.

Como surgiu a ideia de criar o programa RedEscolas AntiCorrupção?

O nascimento da All4Integrity é antecedida pela ação de André Corrêa d’Almeida quando, a 5 de outubro de 2020, lança nas ruas de Nova Iorque o movimento #libertemomeupaísdacorrupção, apelando à mobilização da sociedade civil em torno da questão da prevenção e combate à corrupção. Na sequência deste movimento surgiu a ideia de aferir a possibilidade deste tema chegar às escolas. Depois de amadurecer a ideia, preparei uma proposta de desenvolvimento de atividades, no âmbito da Formação para a Cidadania, que apresentei à direção do colégio onde trabalho. A proposta era circunscrita aos alunos do ensino secundário, com uma dimensão muito objetiva e prática, assente em temáticas específicas, a realizar-se até ao final do primeiro período, com vista a celebrar o 9 de dezembro de 2020 – Dia Internacional Contra a Corrupção. A direção do colégio achou a ideia excelente, porque sai fora do que são as temáticas trabalhadas habitualmente, nomeadamente no âmbito dos Direitos Humanos. Era uma aposta que fazia todo o sentido, mas que ao mesmo tempo levantava o enorme desafio de perceber como é que os alunos iam aderir a estas temáticas. Inicialmente tivemos diretores de turma e professores com alguma desconfiança, e até desconforto dado que, para alguns deles, era uma temática com eventual conotação política e, consequentemente, era uma incógnita a reação dos próprios encarregados de educação. O que é certo é que foi surpreendente a forma como os alunos aderiram ao projeto, e mais surpreendente ainda, o conhecimento que já tinham sobre a questão da corrupção, particularmente na área do desporto. Os alunos conheciam muito bem os mecanismos da lei, nos processos de compra dos passes dos jogadores, que tornavam estas transações pouco transparentes. Para mim tornou-se claro que, independentemente da escola onde se viesse a implementar um eventual programa de literacia anticorrupção, o trabalho deveria começar com os professores – na clarificação do processo/fases do programa e dos conceitos -, e ao mesmo tempo não lhes acrescentasse mais trabalho, nem ser encarado como um problema que, eventualmente, pudesse afetar a dinâmica das escolas. Desde a primeira edição, percebemos qual o caminho a seguir.

De que forma o desenho deste programa responde à necessidade da promoção da literacia anticorrupção e de uma cultura de integridade em Portugal?

Desde a primeira edição, entendemos que o sucesso da implementação e desenvolvimento deste programa de literacia anticorrupção passaria por facultar aos professores uma planificação dos trabalhos assente em dois grandes pilares – a flexibilidade e a interdisciplinaridade. Para a equipa que delineou este programa era muito claro que o programa tinha de ser adaptável à realidade de cada escola (pública, privada, de ensino regular ou profissional) e que deveria/poderia promover a participação de todas as disciplinas. Foi nesse sentido que criámos um documento/plano de trabalho, que procurámos que fosse o mais completo possível, com uma primeira parte de teor muito académico, com muita fundamentação pedagógica, e uma segunda parte que consistia na planificação para os professores.

Desde o início, assumimos que este é um programa de formação para a cidadania, e sendo esta área curricular dinamizada pelo diretor de turma, que pode ser um professor de qualquer disciplina, tinha que, naturalmente, promover a interdisciplinaridade.

Por outro lado, construímos o programa por forma a que, ao longo do ano letivo, houvesse dois momentos agregadores e celebrativos – o primeiro em torno do dia 9 de dezembro – Dia Internacional Contra a Corrupção – e a semana do 25 de Abril – em ordem a que as escolas procurassem dar visibilidade ao trabalho desenvolvido pelos alunos, por via de uma exposição, de uma conferência ou de uma entrevista num jornal, entre muitas outras propostas. Queríamos que os alunos sentissem o seu trabalho valorizado, mas por outro lado queríamos que isto fosse uma marca na escola que mobilizasse a comunidade educativa.

Ao longo de todo este processo, e sendo este um programa de formação para a cidadania, preocupámo-nos sempre promover uma narrativa que, por um lado aproximasse os nossos jovens das instituições políticas, do poder central ou local, mas também uma narrativa que não fosse fatalista, incendiária e do “Velho do Restelo”. Desde a primeira hora, foi nossa primeira preocupação construir uma narrativa fundamentada em factos, números, relatórios nacionais e internacionais e em exemplos, mas sempre com um discurso positivo, construtivo, de ação e de mobilização da sociedade civil em prol da promoção de uma cultura de integridade. Esta foi sempre a lógica que nos moveu.

Num tempo em que os nossos jovens estão cada vez mais desiludidos com o nosso país, temos de lhes devolver a esperança. Há toda uma narrativa que se faz e que tem de começar pelos conceitos – o que é a corrupção? Depois, os números são excelentes meios pedagógicos e motivacionais, porque nos chocam, interpelam, consciencializam e mobilizam. É esta construção e narrativa que nos leva a querer debater um conjunto de questões muito importantes para o nosso país e para percebermos as nossas práticas culturais. Aliás, o João Ribeiro-Bidaoui fez um ensaio muito interessante, para a Fundação Francisco Manuel dos Santos – O compadrio em Portugal – onde aborda esta perspetiva nomeadamente na literatura: quando analisamos o “Auto da Barca do Inferno” de Gil Vicente lá está alguém a ser corrompido, quando analisamos “As Farpas” de Ramalho Ortigão e do Eça de Queirós lá está a corrupção. Este é um fenómeno que nos persegue ao longo dos tempos, está colada à pele e tem muito a ver com as circunstâncias de desenvolvimento, ou falta dele, do nosso país. É este tipo de narrativa que desperta e tem ganho lastro.

Da experiência com a implementação do projeto em contexto escolar, qual a sua perceção sobre os desafios encontrados?

A primeira edição foi um enorme desafio. A falta de recetividade, e até alguma desconfiança, por parte dos professores poderia ter comprometido a implementação deste programa de literacia anticorrupção. Para contrariar esta evidência, tivemos que estar disponíveis para conversar com cada professor, tirar dúvidas, ajudá-los a adaptar o programa à sua disciplina e à sua escola. Para o programa não ser um problema para as escolas, tínhamos de cruzar as exigências que são impostas às escolas, nomeadamente no que diz respeito ao desenvolvimento das aprendizagens essenciais e, portanto, na base dos nossos documentos, está, entre outros, o Perfil do Aluno à saída do Ensino Obrigatório. Oferecemos um conjunto de atividades e de ideias que podiam ser transversais a todas as disciplinas, mobilizar várias disciplinas e, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento de aprendizagens e de competências por parte dos alunos. Esta é uma temática muito sensível e improvável de se trabalhar numa escola. Por isso, foi e é muito importante falar com os professores e desamarrá-los de uma série de preconceitos e bloqueios que podem comprometer o sucesso da implementação do programa ReDEscolas AntiCorrupção. Para tal, produzimos três vídeos promocionais, um dirigido aos diretores das escolas, outro para os professores e outro para os alunos, para serem apresentados nas aulas, nas reuniões de pais e/ou de professores. Todos estes materiais estão disponíveis, em acesso aberto, no website da All4Integrity.

Numa primeira abordagem às escolas, uma grande maioria dos professores referiram que o programa tinha conotações políticas e, como tal, tinham receio de levar o programa para as escolas, cujas direções já se encontram muito polarizadas do ponto de vista político. Passaram as férias e a uma semana de terminar o período de adesão tínhamos zero escolas, havia uma certa desconfiança. Pensei que tudo iria mudar quando conseguíssemos uma notícia num jornal de âmbito nacional, e foi o que aconteceu: o Público mostrou interesse no nosso trabalho e fez-nos uma entrevista e nessa semana 17 escolas aderiram ao programa RedEscolas AntiCorrupção. Começamos com as 17 escolas, com um total de 1400 alunos e 27 professores de disciplinas muito diferentes. Na primeira edição houve assim um aspeto fundamental, a divulgação feita pelo jornal Público e na Rede de Bibliotecas Municipais de Lisboa, que nos ajudaram a trazer o reforço da imagem de credibilidade e de excelência do trabalho que acreditamos que estamos a fazer. Paralelamente, a Comissão Nacional da Unesco também reconheceu publicamente o valor do nosso trabalho junto das escolas e, mais tarde, também tivemos o apoio do Instituto Padre António Vieira, bem como da Associação ACEGIS e da Pista Mágica, que têm sido um extraordinário meio de divulgação do trabalho que a RedEscolas tem vindo a desenvolver.

Qual tem sido o feedback obtido por parte dos professores?

Tem sido uma evolução muito interessante porque temos muitas escolas repetentes, desde a primeira edição, sendo que a Escola Portuguesa de Macau é uma delas. Um dos aspetos a destacar é a ação do professor “campeão” aquele que, desde a primeira edição ‘pensou fora da caixa’ na sua escola e contagiou positivamente outros colegas, outras turmas e fez acontecer! O impacto, ainda por medir de forma conceptual e analítica, é o crescimento do número de escolas. Da primeira para a segunda edição da RedEscolas AntiCorrupção o número de escolas triplicou. Por outro lado, tem sido muito interessante acompanhar a continuidade do projeto em escolas embaixadoras (as que estão connosco desde a primeira edição) e a sua capacidade em ajustar o programa através de novas abordagens de projetos que estão a ser desenvolvidos, agora, a partir do 3º ciclo. Se na primeira edição o público-alvo eram os alunos do 9º ao 12º ano, porque achávamos que os alunos estariam melhor preparados, mais próximos da sua vida ativa, cedo fomos interpelados pelas escolas para outros anos, do terceiro ciclo, participarem também. No ano passado já tivemos pedidos para integrar turmas de 7º ano e este ano assumimos que o programa da RedEscolas AntiCorrupção é aplicável a partir do 3º Ciclo.

Este é um trabalho que implica uma grande sensibilidade e sintonia com a realidade de cada escola, valorizando em primeiro lugar a formação integral dos alunos. Costumo dizer que em primeiro lugar estão os alunos e não as instituições, o trabalho é sempre em articulação com os professores e estes precisam de formação – pedagógica e científica – para, como já referi, se construir uma narrativa baseada em evidências, mas assente também em soluções/caminhos de promoção de uma cultura de integridade.

Quais os próximos passos do programa?

O objetivo é continuar a crescer. Este ano temos 59 escolas que aderiram ao programa RedEscolas AntiCorrupção em 6 países e 4 continentes destacando o crescente número de escolas profissionais, principalmente escolas profissionais de hotelaria e turismo. A nível nacional, o nosso objetivo é por um lado estarmos presentes com este programa de literacia anticorrupção em todos os distritos incluindo as ilhas, ainda nos faltam três distritos.

Fora do território nacional já contamos com escolas em França, Moçambique, Macau, Angola, Brasil e com a forte probabilidade de entrar o Chile.

Nestes casos, a própria aplicação e desenvolvimento do programa RedEscolas AntiCorrupção levanta muitos outros desafios, nomeadamente as especificidades da escola, da comunidade, do meio onde está envolvido – as abordagens de corrupção em África não são as mesmas das que temos nos países ditos desenvolvidos -, e o próprio calendário escolar.

Quando me perguntam qual é o nosso objetivo, mais do que o número que alcançamos, prefiro ter a evidência de que o programa está a ser implementado com a narrativa que queremos, porque é assim que vamos despertando consciências; sabemos que não vamos mudar o mundo de um dia para o outro, não vamos acabar com a corrupção, mas vamos criar este nível de atenção, de conhecimento e de uma consciência, exigência e mobilização que deve mudar comportamentos, sejam comportamentos individuais, sejam comportamentos institucionais. Quando começamos a ver que a escola fica sensível à questão da transparência e de como isso é importante para fazer crescer a credibilidade das instituições, saímos todos mais reforçados. Quando falamos no último patamar do nosso programa, que é a mudança de comportamentos, é fundamental que cada vez mais as pessoas e as instituições sejam exigentes face aos critérios, tenham mecanismos onde possam aceder e onde saibam com o que podem contar e como se podem mobilizar em prol de uma sociedade mais justa e íntegra.

Saiba mais sobre o programa RedEscolas AntiCorrupção aqui!

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