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Rosa Saavedra – APAV Serviços de Sede no Porto

“A escola é (…) um contexto de sinalização de violência privilegiado.”

Licenciada e doutorada em Psicologia da Justiça, Rosa Saavedra colabora com a APAV desde 2002, sendo atualmente  Assessora Técnica da Direção.
Os seus interesses de investigação e intervenção estão centrados na implementação e avaliação de programas de prevenção da violência e nos procedimentos de avaliação de risco junto de vítimas particularmente vulneráveis. 

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima tem uma história de 30 anos para contar. Desde que integrou a equipa da APAV, quais os momentos que marcaram o seu percurso?

O meu percurso na APAV iniciou em 2002, como estagiária curricular. Fiz a minha licenciatura na Universidade do Minho, escolhi a pré-especialização em Psicologia da Justiça e Reinserção Social, e o Gabinete de Apoio à Vítima do Porto como local de estágio. Trazia na minha bagagem aprendizagens sobre vitimologia, sobre o impacto do crime e da violência, sobre a intervenção psicológica neste contexto, mas o dia-a-dia de um serviço de Apoio à Vítima é muito mais do que aquilo para que estamos preparados do ponto de vista académico. Eu percebi, no primeiro dia, que os recursos humanos são sempre escassos para as necessidades que emergem e que chegam à associação. Era assim há 19 anos e continua a ser; os recursos de uma organização não governamental para fazer face às necessidades que as vítimas têm são sempre insuficientes, independentemente do trabalho em rede que existe.

As vidas que nos chegam são extraordinariamente tristes, extraordinariamente difíceis e às vezes quase inimagináveis. É como se cada situação que chega superasse aquilo que nós podíamos imaginar de mais grave, de mais terrível, de mais penoso. Marcaram-me particularmente dois momentos de confronto com a realidade. Marcou-me uma vítima que me mostrou a barriga de grávida e que estava repleta de hematomas; marcou-me quando tomei conhecimento que uma das vítimas que acompanhava tinha sido vítima de tentativa de homicídio por parte do ex-marido. O que a teoria nos diz, é que a gravidez não nos protege da violência, a gravidez é na verdade um fator de risco; e a separação não protege da violência, é um momento particularmente arriscado. A prática não desmente este conhecimento. 

Este foi o meu percurso inicial, mais centrado no atendimento a vítimas na assessoria técnica do Gabinete de Apoio à Vítima do Porto, e senti desde cedo que se investia tanto na prevenção secundária e terciária e tão pouco na prevenção primária. Foram existindo, na altura, algumas oportunidades de financiamento extraordinário e o desenvolvimento de recursos mais estruturados para trabalhar na prevenção foram surgindo e foram começando a ser apontados como uma possibilidade. Claro que aqui não foi só a minha vontade, foi a minha vontade acompanhada da estratégia da APAV de apostar e investir num desenho de prevenção mais sustentado na evidência e, sobretudo, num modelo sistematizado que permitisse a sua replicação e a sua sistematização.

Até hoje, e mais ou menos desde 2003, mantenho a minha ligação à coordenação de programas de prevenção. Eu costumo dizer que trabalho na parte feliz, na parte da prevenção, na comunidade. Na prevenção, sinto que estamos a trabalhar para combater o problema antes de ele aparecer. Mas, ao contrário do trabalho realizado pelos serviços de proximidade no apoio direto às vítimas, neste contexto de trabalho é menos frequente encontrarmos as “tais histórias” extraordinariamente tristes e/ou violentas que referi atrás.

A intervenção que a APAV faz a nível da prevenção é maioritariamente com crianças e jovens ou é com a população em geral?

Do ponto de vista prático, eu diria que é uma prevenção universal, é dirigida à população em geral. Do ponto de vista mais estruturado da prevenção, nós estamos neste momento mais direcionados para as crianças e jovens, sobretudo para as crianças. Quando falo de sensibilizar, informar acerca da temática e informar a população acerca dos recursos disponíveis, aí sim, temos uma franja de população mais abrangente e que não enquadra apenas as crianças e os jovens. 

Partilhados os resultados estatísticos da atividade da APAV referentes a 2020, que reflexões faz sobre os dados relativos a crianças e jovens?

Antes de mais uma clarificação: os dados são relativos às situações de violência e crime que nos chegam ou dos quais temos conhecimento, seja através de denúncias por parte de terceiros, ou através de pedidos de ajuda diretos; não são dados oficiais e não são criminalidade participada; são o retrato do apoio que a organização presta relativamente às pessoas que nos procuram; e neste sentido, estes dados serão sempre a ponta do iceberg. Os números sobre vitimação contra crianças e jovens que surgem na nossa estatística nunca serão o retrato da realidade da violência contra crianças e jovens.

A APAV é também reconhecida pelos dados estatísticos que produz e publica. E, não obstante esta partilha de informação ser relevante, é importante identificarmos as suas limitações e lembrar que os dados refletem apenas a dimensão do apoio a uma organização de apoio à vítima e não a dimensão real dos fenómenos de violência e crime.

Muitas das pessoas com as quais nós contactamos não entram nas estatísticas da criminalidade participada, porque não apresentam queixa-crime da sua situação junto de um departamento policial ou do Ministério Público. Olhando os números e os dados, percebemos que esta realidade da violência afeta muitas crianças e jovens, afeta diferentes dimensões quer do ponto de vista da violência familiar, da violência escolar, da violência sexual, e estando nós conscientes do impacto que a violência e o crime podem ter no desenvolvimento das crianças a curto, médio e a longo prazo, são dados que obviamente nos preocupam. As situações de violência em si são todas diferentes e com particularidades muito distintas e, aquilo que nós também sabemos e que nos descansa quando as pessoas chegam até nós, é que uma intervenção precoce e profissional neste tipo de situações, pode fazer a diferença na minimização do impacto da violência.

Também sabemos que a violência na infância e na juventude é um fator de risco para a ocorrência de situações de violência nas relações adultas, quer enquanto vítima quer enquanto pessoa agressora.

Isto é uma chamada de atenção à qual nós não podemos estar indiferentes, porque enquanto tivermos crianças que são vítimas de violência e de crime no seio das suas famílias e no seio das suas comunidades, nós teremos sempre uma probabilidade maior de vermos estes comportamentos replicados e reproduzidos na forma como interagem com as outras pessoas.

Quando olhamos para estes números, percebemos que estamos ainda longe de conseguir uma proteção destes grupos que nos permita mudanças do ponto de vista geracional e que permita que mais adiante tenhamos um retrato diferente daquilo que são as dinâmicas de violência e crime. Quando uma mãe, quando um pai, quando um adulto maltrata uma criança, aquilo que lhe está a ensinar é que a violência é aceitável e que é uma forma adequada para punir e para controlar. Mas está a ensinar mais coisas: está a ensinar que a violência é tolerável e que pode vir das pessoas que nos deviam proteger. E esta mensagem, para além de ser muito forte, é muito difícil de desconstruir, porque está muito enraizada – “Eu fiz porque vi fazer, eu não sei fazer de outra forma”.

O que me assusta nos números, é o que está dentro dos números, não só o presente do que eles significam do ponto de vista prático, na realidade atual destas crianças e destas famílias, mas do que isto significa ainda, do trabalho que nós temos que fazer para desmontar isto nas dinâmicas estabelecidas nas famílias e nos relacionamentos que estas crianças e jovens estabelecem. 

Qual a relação entre a APAV e os estabelecimentos de ensino em Portugal? 

A APAV, face à sua experiência na intervenção no apoio a vítimas de todos os tipos de crime, é frequentemente chamada para atuar em contextos educativos, numa lógica mais de informação, sensibilização e formação dirigida a públicos estratégicos, como professores, educadores, psicólogos, sobre diferentes temáticas da vitimação. Temos tido uma presença assídua nos diferentes níveis de ensino, desde o pré-escolar até ao secundário, passando também pelo ensino superior. Estamos presentes em aulas de licenciatura, em conferências e congressos ou através de publicações de natureza mais técnica. Tem sido importante encontrar nestes parceiros a possibilidade de intervir em contextos para testar este tipo de projetos.

A escola é, por força do tempo que as crianças aí passam, um contexto de sinalização de violência privilegiado. A entrada na escola, é por si só o momento em que a violência que se passa no privado sai muitas vezes cá para fora, e a escola e os profissionais que aí trabalham estão bem conscientes de que podem ter um papel importante nesta sinalização e também na prevenção da violência.

A escola é também um contexto de socialização, é o primeiro contexto de socialização fora da família, em que as crianças são testadas face a competências pessoais e sociais que trazem na sua bagagem, e é também aqui que as crianças são expostas à diversidade e à diferença. É em si um contexto de intervenção valiosíssimo do ponto de vista prático porque permite esta universalidade da intervenção, uma vez que, à partida, todas as crianças frequentam a escola. No atendimento, na intervenção secundária e terciária, nós não conseguimos chegar a todas as vítimas, mas na prevenção primária conseguiríamos chegar a todas as crianças, porque estão todas na escola.

Sem pretender questionar a importância do capital humano das escolas, há temas que pela sua complexidade, pela sua especificidade, não podem ser delegados por decreto para serem abordados pelos profissionais que aí trabalham. Refiro-me a questões como a violência doméstica, a violência nas relações de intimidade, a violência nas relações de namoro, o bullying, os maus-tratos contra crianças e os riscos nas redes sociais; é sobretudo nestas áreas que a APAV tem sido chamada a atuar, precisamente porque os profissionais entendem que há um conjunto de informações que é importante e que devem ser apresentadas por entidades externas à escola, e as parcerias têm permitido este trabalho. Os motivos destas parcerias estão assentes no conhecimento do trabalho da APAV nestas áreas e nesta perceção clara de que não deve ser a escola sozinha a assumir esta responsabilidade, de uma forma isolada e autónoma, sob pena de fazer mais mal do que bem. Aqui há um pressuposto que gostamos de reforçar, que é o seguinte: assumir que fazer alguma coisa é melhor do que não fazer nada é um péssimo pressuposto. Transmitir informação imprecisa, trabalhar competências de forma inadequada, sejam elas relacionais, emocionais e de segurança, pode trazer danos irreversíveis. E no limite, estes erros na atuação e na transmissão de informação podem provocar situações de silenciamento e de não denúncia, que num contexto diferente, e com profissionais devidamente preparados para a atenção e para a identificação desta sinalização, seriam identificadas e seriam alvo de intervenção.

É importante que esta parceria e complementaridade entre o contexto educativo e as organizações da sociedade civil se mantenha. Temos tido parcerias com Agrupamentos de Escolas, Municípios, com a Direção-Geral da Educação, que nos têm permitido reforçar esta clara noção de que temos objetivos em comum e que a capacitação dos profissionais, a prevenção da violência através da informação e da sensibilização, mas sobretudo a realização de esforços mais concertados do ponto de vista da prevenção, é um combate à violência como um todo, para o qual todos estamos motivados.

O que é que nós sentimos em relação aos profissionais que atuam nestes contextos? É que eles procuram soluções e procuram recursos para responder às dificuldades que identificam. Há áreas que os preocupam e que, obviamente, são áreas e dúvidas para as quais têm de encontrar uma resposta, como por exemplo: como lidar com uma situação de revelação de uma criança?

Os profissionais passam horas com crianças, estabelecem com elas relações de confiança, e portanto, a probabilidade de uma criança lhes revelar uma situação de violência ou crime é real.  O que é que eu faço? Como é que eu vou proceder se perceber que há algo que se passa naquela família? Até onde é que a escola pode ir para proteger esta criança? Há aqui um conjunto de questões, de angústias e preocupações que os profissionais nestes contextos têm e que não podem ficar sem resposta. Esta resposta, pode e deve ser encontrada nesta articulação com organizações da sociedade civil, com estruturas que trabalham estas áreas e que, dentro dos seus recursos, estão disponíveis para apoiar.

Que iniciativas têm sido promovidas pela APAV em contexto escolar? 

Entre os projetos que temos desenvolvido, destacaria por exemplo o projeto ‘Unisexo’, no âmbito do ensino superior, e que trabalhou no domínio da prevenção da violência sexual. Destacaria um dos primeiros projetos de prevenção o ‘APAV 4D’, que foi um programa de intervenção integrada, que visava intervir com alunos e alunas do 9º ano de escolaridade, para a prevenção da violência nos relacionamentos íntimos e comportamentos de risco associados.

Neste momento temos no terreno o Programa Hora de SER – Sensibilizar e Educar para os Relacionamentos, mais focado no pré-escolar e no 1º ciclo, e que procura operacionalizar aquilo que é o modelo da APAV na área da prevenção. São projetos que assentam em intervenções estruturadas, que são intervenções alinhadas com a literatura e, por isso, focadas na prevenção da violência. Então, que fatores de risco temos de trabalhar? Que fatores protetores é que nós temos de promover? São projetos assentes também no desenvolvimento de manuais e recursos que permitem aos profissionais a sua aplicação e a sua replicação em diferentes contextos.  Assentam também em formação de profissionais de forma a promover esta especialização para a sua intervenção e em processos de avaliação e de monitorização contínua.

O programa ‘Hora de SER’ é um programa de prevenção universal, que foi pensado para ter uma implementação mais continuada no tempo. O Hora de SER, dirigido a crianças do pré-escolar, foi pensado à luz das características desenvolvimentais das crianças entre os 3 e os 6 anos.

Tratam-se de programas de competências muito estruturados, mas que, por serem implementados por uma organização de apoio à vítima com um objetivo a longo prazo da prevenção da violência, têm aspetos que nos distinguem do ponto de vista prático de outros programas de promoção de competências. Diria que há aqui elementos diferenciadores, que têm a ver com a promoção da empatia relativamente à vítima, que é uma área que obviamente está ligada à nossa intervenção, que nos interessa e que a literatura também nos diz que é importante, do ponto de vista de prevenirmos situações de vitimação mas também situações de perpetração.

A pessoa adulta de confiança é um conceito que eu gostaria de sublinhar, porque também é um elemento central destes programas. Quem são as pessoas adultas de confiança? São não só aquelas com quem podemos partilhar coisas negativas e que nos preocupam, mas sobretudo aquelas que nós já procuramos para partilhar experiências positivas do nosso dia. O exercício que é feito com as crianças, no âmbito da intervenção, de conseguirem identificar quais são as características desta pessoa e quem é, é uma área importante. Todas as crianças deviam ter um plano de prevenção para trabalhar diferentes áreas, para desenvolver diferentes competências e para serem expostas a um conjunto de situações para que, quando deparadas com elas, pudessem mais facilmente saber o que fazer.

Os nossos projetos, sobretudo estes mais recentes, têm começado a trabalhar a um nível mais precoce, começamos com o ‘SER’ dos 6 aos 10 anos e depois percebemos que não era suficiente e, por isso, recuamos. Claro que isto obriga a uma adaptação de conteúdos – o nível de compreensão de uma criança de 3, 4, 5 anos não é a mesma, nem a abordagem que vamos utilizar pode ser igual. Mas vamos expondo as crianças progressivamente a um conjunto de situações e os anticorpos relativamente a situações de violência vão sendo criados. O desafio da continuidade é um dos desafios que vamos encontrando nesta implementação.

E que outros desafios identifica nas iniciativas desenvolvidas pela APAV em contexto escolar? 

Há desafios a vários níveis. O primeiro desafio, diria que é a perceção clara de que a prevenção é uma urgência, que é um investimento necessário. Esta cultura de prevenção que nós vemos acontecer noutros contextos, mas que não vemos de uma forma tão direta nas questões da educação para a não violência, é um desafio mais macro.

Se nós estivermos a falar em prevenção primária estamos a atuar antes do problema acontecer, e isto é quase uma utopia, nós nunca sabemos se num grupo de crianças, numa turma, não teremos ali uma, duas ou três situações em que as questões da violência já tenham acontecido.

Ter alguma garantia de que estamos a trabalhar no momento certo com todas as crianças, não é possível. Uma coisa é certa, o nosso programa Hora de SER, na forma como está pensado, no investimento e na duração de cada uma das sessões, não resolve situações com fatores de risco já muito instalados. Isto é um desafio, porque quando este programa é apresentado, esta oferta deve ser direcionada para crianças que vão efetivamente beneficiar ainda desta intervenção.

Espero que não entendam mal o exemplo que vou dar. Quando estamos um pouco cansadas alguém diz – “Precisas de tomar um suplemento alimentar ou dormir umas boas horas de sono e vais sentir-te melhor” -, mas se nós estivermos mesmo doentes, precisamos efetivamente de uma intervenção e de um tratamento. As abordagens de prevenção podem ser categorizadas tendo em consideração o momento em que a intervenção é realizada – primária, secundária e terciária – ou de acordo com o grupo-alvo de intervenção – Universal, seletiva ou indicada. A prevenção universal é dirigida à população em geral, independentemente do nível de risco; a prevenção seletiva é destinada a pessoas/grupos considerados em maior risco de envolvimento em situações de violência, ou seja, que apresentam um ou mais fatores de risco; a prevenção indicada é uma abordagem de intervenção junto de pessoas/grupos de alto risco com algum envolvimento em situações de violência, seja enquanto vítimas e/ ou como agressores/as. Faço este esclarecimento para enquadrar o que vou referir de seguida. Há grupos e contextos onde ainda é possível que “umas horas de sono” e uma intervenção mais focada na aprendizagem de competências sociais e pessoais possa resolver; há outros, em que é preciso avançar para outros níveis, e é preciso um tratamento mais direcionado, sob pena de nós não estarmos a atuar na causa direta do problema, porque já existe uma causa identificada. Um mesmo programa de prevenção não pode servir estes dois objetivos: há programas que são de prevenção universal, há programas que são pensados já numa lógica de intervenção mais individualizada, que têm de ser mais direcionados para um problema já identificado e já muito enraizado. Não é expectável que um mesmo programa responda a estes diferentes níveis de intervenção.

É claro para todas as pessoas que é importante prevenir, mas não é claro que este investimento tem de acontecer. Falo efetivamente do investimento financeiro, um investimento claro na área da prevenção, que signifique mudanças na forma como a articulação das escolas com as organizações é realizada. Neste momento existe a parceria, ou uma articulação pontual, para falarmos sobre um tema, e isto continua a ser e a fazer parte da nossa missão, mas não resolve a essência das questões mais graves e dos problemas de maior dimensão – a informação não muda atitudes e não muda comportamentos. E é esta perceção, este desafio que também tem de ser pensado, porque este investimento é importante para as escolas.

Há mais desafios que têm a ver com o espaço em que nós intervimos. No pré-escolar e no 1º ciclo há disponibilidade dos professores para encontrar um contexto em que esta intervenção possa acontecer. No 5º e no 6º ano, temos a ‘Educação para a Cidadania’ onde este tipo de intervenções pode acontecer, mas quando começamos a subir o nível de escolaridade, a existência de um tempo para a prevenção, obriga a que outras disciplinas estejam envolvidas neste esforço. Por outro lado, a comunidade educativa não é apenas a escola e os alunos e as alunas, a comunidade educativa são os profissionais que lá estão, as famílias e esta intervenção, que nós temos direcionado mais para as crianças, deveria idealmente abranger também as famílias. As estratégias que usamos para chegar às famílias, incluem o desenvolvimento de atividades que as crianças levam para casa e que fazem em conjunto com a família, tendo o objetivo de prestar informação sobre aquilo que está a ser trabalhado no contexto escolar, estimulando um canal de comunicação que pode ser importante para a criança transmitir as aprendizagens.

Às vezes a nomenclatura APAV assusta as famílias, porque é muito identificada no âmbito do apoio a vítimas de violência doméstica, e menos nas dimensões da formação e da prevenção. O nosso objetivo é sermos sempre vistos como aliados e não como elemento desestabilizador das famílias.

Outro desafio importante passa por ajudar as escolas a identificar programas e recursos, porque existe uma oferta significativa de recursos educativos – histórias, jogos, programas -, na qual a Comissão para a Cidadania e para a Igualdade de Género tem também contribuído, tendo lançado requisitos mínimos para programas de prevenção. Isto é importante porque estamos a ser progressivamente mais ambiciosos nos recursos que estamos a desenvolver e estamos a incluir e a integrar áreas que até então não seriam tão valorizadas, como a avaliação. Isto é uma discrepância que já encontramos há muito tempo, que é a discrepância entre aquilo que está no terreno e que é implementado, e aquilo que é efetivamente avaliado. Existirá sempre uma discrepância brutal relativamente a estas duas dimensões, mas se vamos investir num programa devemos questionar quais são os resultados da sua avaliação, e é importante que as escolas, os contextos educativos, as associações de pais, que têm também um papel importantíssimo, perguntem: “Esse recurso está avaliado? Funciona? Tem evidências de impacto?” E voltando atrás, fazer alguma coisa não é necessariamente melhor do que não fazer nada.

E terminando esta entrevista, que importância atribui à intervenção na prevenção a partir de um trabalho conjunto? 

Arriscamos demasiado quando não somos criteriosos nas ferramentas que utilizamos, nas metodologias que colocamos em prática, porque nós estamos a trabalhar com pessoas. Estamos a trabalhar com crianças, o nosso objetivo é prepará-las para serem melhores adultos, melhores mães, melhores pais, melhores pessoas, e isto não é uma brincadeira. Isto é um investimento demasiado sério para nós fazermos algo engraçado e que as crianças gostam, mas que não tem impacto e pode ser na verdade perverso.

Há muito risco associado a intervenções não validadas e cujos resultados desconhecemos. O ideal será sempre procurar o apoio de entidades externas para a realização da avaliação do impacto das iniciativas, um olhar externo que nos ajuda a olhar de forma crítica para o nosso trabalho, para percebermos se o que estamos a fazer funciona ou não, e se não funciona sabemos que é importante não investirmos aí. Diria que é igualmente importante colocar a academia e organizações da sociedade civil a trabalhar em conjunto para encontrarem metodologias e ferramentas validadas que possam ser utilizadas.

Nós sabemos quais são os custos da violência, do ponto de vista social, da saúde, da justiça, da educação; uma criança que é vítima de violência não terá o mesmo desempenho escolar, não terá as mesmas oportunidades que uma criança tem num contexto normativo. Isto não tem impacto apenas no seu desenvolvimento académico atual, mas na forma como se vai enquadrar do ponto de vista laboral e no futuro.

As famílias são um desafio, mas com quem temos muito a aprender, sobretudo porque têm um papel importantíssimo na prevenção e na identificação da violência fora da família. A violência não está sempre dentro da família, há situações gravíssimas de violência que acontecem em contexto escolar e a família tem aqui um papel fundamental na identificação destas situações e na atuação. Este trabalho mais articulado, mais ecológico, mais integrado com todos os elementos da comunidade educativa é um desafio a investir, é um desafio que se mantém e que se manterá.

Para mais informações sobre o trabalho desenvolvido pela APAV consulte.

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