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A educação socioemocional

“Que no médio e longo prazo, estas competências façam formalmente parte do currículo.”

Andreia Espain é Presidente da Direção da Associação Mente de Principiante e autora do programa CALMAMENTE® – Aprendendo a Aprender-se. Doutoranda em Psicologia da Educação, exerce funções de educadora e consultora para a promoção do Bem-Estar integral em contexto escolar, familiar e comunitário.

Como surgiu a ideia de criar o programa CALMAMENTE®?
Esta ideia surgiu de uma forma muito fluida e natural. Sou professora do ensino secundário de uma disciplina de exame e, desde o início da minha carreira e com um agravamento ao longo dos anos, comecei a sentir que a maior parte dos meus alunos adolescentes apresentava algumas dificuldades de gestão emocional, de autorregulação, até mesmo de comportamentos empáticos. Lecionando uma disciplina de exame isso tornou-se ainda mais evidente, principalmente na véspera dos testes sentindo a ansiedade e uma angústia que os alunos não conseguiam gerir de uma forma saudável; por isso, sentia que, para além da parte técnica e dos conhecimentos da disciplina que tinha que lhes transmitir, precisava também de lhes dar algumas ferramentas que lhes permitissem atenuar a dificuldade de autorregulação e comecei a estudar o que é que poderia fazer e a conduzir pequenas experiências.

O programa CALMAMENTE® acabou por surgir com base nas ferramentas e dinâmicas que tentava introduzir nas aulas e que verifiquei que tinham resultados. Costumo dizer que a sala de aula foi o meu laboratório e os meus alunos acabaram por participar nas minhas experiências, percebendo o seu impacto e permitindo aprimorar essas ferramentas, ao longo do tempo.

Senti ainda a necessidade de estudar outras áreas que não fazem parte da formação de professores, procurando na psicologia e noutras áreas algumas ferramentas que me permitissem fazer um trabalho mais fundamentado. Este programa, que acompanha os alunos durante um ano letivo completo, começa no início do ano e tem a duração de 32 semanas, podendo variar de acordo com os ciclos de escolaridade, e, por isso, permite acompanhar o aluno desde o primeiro dia até ao fim do ano. O programa existe desta forma estruturada desde 2014, mas já antes fazia parte das minhas práticas; em 2014, senti a necessidade de dar um nome ao programa e formalizá-lo, estruturá-lo e partilhar estas boas práticas com outras pessoas que o queiram implementar também.

De que forma o desenho deste programa responde à necessidade de promoção da literacia emocional, em Portugal?
O programa trabalha muitas áreas desde o autoconhecimento, a autoconsciência, a empatia, a argumentação crítica e a perspetiva crítica, que, de acordo com a minha experiência já em muitas escolas, não é sempre exercitada nas escolas em Portugal.

A forma de responder a estas lacunas é partilhar com os alunos conhecimento sobre ‘como é que eu me conheço’, ‘como é que eu conheço o outro’, ‘o que são as minhas emoções’, e mostrar que as emoções existem, validando a expressão das mesmas. E este trabalho tem de ser continuado, da mesma forma que trabalhamos a matemática e o português durante anos, ao longo do currículo escolar, também estas competências devem ser trabalhadas em função da maturidade e do crescimento das crianças e dos jovens.

Desde sempre ouvimos – ‘não chores’, é feio reagir desta forma’, ‘estás tão triste mas tens uma vida tão boa’ – expressões que pretendem atenuar a dor do outro mas não pela positiva, pois a dor do outro existe e temos de a reconhecer.

A nossa dor existe e o objetivo é validá-la e perceber que podemos escolher o que fazemos de acordo com aquilo que sentimos, com a nossa circunstância e que impacto a nossa ação tem nos outros, no nosso grupo. Através do trabalho em várias vertentes, no contexto escolar, no contexto comunitário e em grupos fora das escolas, promovemos a reflexão sobre que impacto têm as nossas ações, sejam pequenas ou grandes, seja nas outras pessoas e/ou nos grupos onde nos movemos. Se as crianças tiverem esta perceção desde uma idade precoce, a sua literacia emocional vai ser muito notória no seu futuro e a nível profissional.

Isto é no fundo uma bola de neve, tudo o que faço vai ter impacto em mim e nos outros, mas conheço-me e conheço as minhas limitações e capacidades, bem como as do outro, agindo para me e para o ajudar – e se todos tivéssemos estas ferramentas e as exercitássemos efetivamente no dia-a-dia, o mundo era seguramente mais bonito.

Da experiência com a implementação do programa em contexto escolar, qual a sua perceção sobre os desafios encontrados?
A resistência à mudança é sempre um desafio. Mas, a ênfase dos programas da Tutela na parte cognitiva e a desvalorização da parte emocional e do papel do aluno no seu próprio processo de aprendizagem é também um desafio.

Quando comecei a trabalhar como professora, estes assuntos não eram comuns na escola e era-me dito que ‘estas coisas são coisas da família’. Não nos podemos esquecer que a escola tem um papel social muito importante, a escola não é só um veículo transmissor de conhecimento; a escola, a par da família, é a oportunidade de algumas crianças poderem fazer diferente na sua vida.

Muitas vezes, passamos mais tempo com os alunos na escola do que eles passam com a família e, independentemente de esta situação ser a ideal, esta é a realidade.

Se por um lado existe a resistência à mudança, por outro lado existe uma dificuldade dos professores em cumprir os currículos das disciplinas e ainda serem capazes de gerir o seu pouco tempo para implementar um programa destes. Aqui está uma ótima oportunidade para trabalharmos realmente a tão falada flexibilidade curricular e, em conjunto, percebermos o porquê deste programa na escola, onde é que o encaixamos e como é que o vamos implementar.

Após a implementação do programa, que feedback tem recebido dos professores?
As equipas de professores com quem temos trabalhado abraçam bastante o programa e o desafio proposto. Mesmo os mais resistentes reconhecem a mais-valia deste trabalho continuado na escola. Por isso, posso arriscar dizer que o feedback positivo tem sido unânime, tal como a vontade de dar continuidade às intervenções.

Temos vários modelos de intervenção: temos um modelo em que é a equipa ‘Mente de Principiante’ – promotora do programa CALMAMENTE® – que se desloca às escolas e faz o trabalho em coadjuvação com os professores titulares, e os professores estão envolvidos mas não são eles que dinamizam o programa; e, temos a formação de equipas nas escolas, em que são os professores a dinamizar. Em ambas as situações, recebemos feedback muito positivo. Nas situações em que não são os professores a dinamizar, temos muitas vezes pedidos de formação para poderem dar continuidade ao programa, o que também é muito interessante. Em algumas escolas, também damos formação à equipa técnica, aos educadores sociais e aos psicólogos, e são eles, que também em coadjuvação, implementam o programa. Atualmente, temos uma equipa técnica a intervir num Município que investiu no programa e sobre a qual recebemos o feedback relativo ao primeiro período, igualmente positivo.

Imagem cedida pela Associação Mente de Principiante

Um dos aspetos que se regista após pouco tempo de implementação do programa é o facto dos professores referirem que conheceram melhor os próprios alunos, criando um relacionamento com os mesmos diferente daquele que tinham. Também notam diferenças na forma como os alunos comunicam e na sua autorregulação, registando uma grande evolução desde as primeiras sessões.

Valorizamos que a família seja envolvida e que os alunos levem para casa aquilo que vão trabalhando no programa, pois a comunidade escolar não só são professores e alunos mas é todo um conjunto que inclui os pais, os encarregados de educação, os auxiliares de ação educativa, as equipas técnicas, as equipas administrativas. Toda a comunidade escolar reflete o feedback positivo, o que nos dá motivação para continuar.

Quais os próximos passos do programa e de que forma é que as escolas podem usufruir do mesmo?
Gostaríamos muito de conseguir oferecer o programa a todas as escolas, mas somos uma associação sem fins lucrativos e a viabilidade financeira surge sempre. Temos tido muitos Municípios a investir e a oferecer o programa aos Agrupamentos de Escolas em várias dinâmicas. Por exemplo, o Município de Valongo fez o investimento para que o Agrupamento de Escolas tivesse o programa, todas as semanas, e que cada aluno tivesse o kit de materiais, o que ajuda imenso o trabalho em casa e favorece muito a intervenção. Neste Município, o programa é dinamizado pela nossa equipa com a coadjuvação dos professores, mas temos outros Municípios – como Macedo de Cavaleiros e Vila Nova de Paiva -, onde demos formação à equipa técnica e é esta que assegura a intervenção.

Temos outros contextos em que há professores que querem fazer formação e que podem fazê-la de forma autónoma e individual, não sendo um projeto global da escola. Destes professores, sabemos que vários estão a implementar o programa na sua sala de aula, na sua disciplina, no seu contexto. Temos também o exemplo de escolas que encontraram patrocinadores na sua região, junto do tecido empresarial que também acaba por fazer parte da comunidade escolar com as mais diversas sinergias, e outras escolas em que a Associação de Pais financia o programa para as turmas e os pais adquirem os kits de materiais. Este kit para cada criança é adquirido uma vez e serve para os anos seguintes.

Apresentamos várias dinâmicas possíveis de implementação do programa e, até hoje, a questão financeira ainda não foi um entrave para nenhuma escola que quisesse realmente implementar o programa. Claro que adoraria que fosse possível implementar o programa em todas as escolas de forma graciosa, mas ainda não estamos aptos a fazê-lo, lá chegaremos algum dia.

Se nos contactarem, estamos disponíveis para encontrar a melhor solução para o que é pretendido, de acordo com as necessidades específicas de cada instituição. Conversamos sempre com as escolas, tentamos perceber o que pretendem, que tipo de intervenção é que gostariam de ter e, em conjunto, encontramos soluções para termos o programa na escola.

Para além do objetivo de chegar a todas as escolas, o que é que pretende mais para este programa?
Queremos continuar a avaliação e monitorização do programa, que é um aspeto absolutamente fundamental para conhecermos o feedback dos atores que se movimentam com o programa. A sua perceção no dia-a-dia, nomeadamente dos pais, dos professores e dos próprios alunos, é uma reflexão fundamental que queremos incluir sempre e de forma qualitativa.

Queremos validar o programa de forma científica, tendo uma parceria com o Departamento de Psicologia e Educação da Universidade da Maia que nos ajuda através da avaliação e da monitorização imparcial e independente. Graças a esta parceria, já temos alguns estudos científicos e resultados efetivos da validade do programa, mas queremos aumentar esta amostra. Neste momento, já temos uma amostra significativa para o contexto português, mas queremos aumentar essa amostra e robustecer ainda mais a evidência científica sobre a validade do programa. No entanto, temos noção que a intervenção em contexto escolar é difícil de avaliar, é difícil ter grupos de controlo para fazer avaliações mais rigorosas, é difícil ter amostras grandes durante todo o período de implementação.

Temos ainda como objetivo trabalhar dinâmicas diferentes para que os alunos tenham uma intervenção de continuidade. Atualmente, temos a intervenção num ano letivo e muito centrada no 1º ciclo, especificamente no 4º ano por ser um ano de transição – uma das transições mais desafiantes, porque os alunos mudam da monodocência para vários professores, mudam de escola, mudam para uma escola maior, deixam de ter o contacto mais próximo com a equipa de auxiliares e com os próprios professores -, mas gostaríamos que pudesse haver esta continuidade e estamos a trabalhar bastante para que isso possa vir a acontecer.

O programa já impactou mais de 3000 alunos, o que é um número muito significativo, mas queremos engrossar este número e ter mais agentes de mudança, mais agentes educativos a colaborar connosco, esse é o grande objetivo agora no curto prazo.

Que no médio e longo prazo, estas competências façam formalmente parte do currículo, para conseguirmos integrar curricularmente este tipo de competências, este tipo de trabalho, este tipo de educação socioemocional.

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