“aprofundar a compreensão do que é a discriminação étnica e racial, sem medo de incomodar”
Como surgiu a ideia de criar o projeto Radika?
Joana Deus: Há cerca de 8 anos que dinamizamos um projeto designado Academia CV.pt – Capacitar e Valorizar em Português, que intervém em escolas do Município de Lisboa, apoiando crianças estrangeiras, recém-chegadas, que não dominam o português, proporcionando-lhes acesso à língua de uma forma individualizada e ajustada às suas necessidades. Através de uma rede de voluntários da comunidade, trabalhamos semanalmente com estas crianças, individualmente. Para além disso, o Academia CV.pt prevê a realização de sessões no âmbito da interculturalidade com a restante turma e foi no âmbito da dinamização dessas sessões que conheci a Simone. Após algumas conversas e reflexões percebemos que era importante e urgente trabalhar noutras temáticas para além da interculturalidade. Sentíamos que o tema estava a ser tratado pela superfície, e não sendo aprofundadas outras questões e temas relevantes. E foi assim que surgiu a ideia do projeto Radika, da necessidade de trabalhar, em contexto de sala de aula, temáticas como a diversidade cultural e a interculturalidade enquanto riqueza e uma caraterística basilar das sociedades contemporâneas, sempre de mão dada com a defesa da igualdade e da não discriminação (racial, étnica, de género, etc.). Naturalmente convidámos a Simone para voltar a colaborar com a Associação Renovar a Mouraria neste projeto, agora de uma forma muito mais ativa e participativa na sua construção, implementação e avaliação.
Lembrando a escola pública como um espaço de educação e de socialização por excelência, tendo a função de combater as múltiplas desigualdades, todas as formas de discriminação e eliminar os ainda existentes fatores estruturais de segregação entre e no interior dos diferentes grupos sociais, o Radika foi potenciado neste espaço privilegiado.
Assim, o Radika pretende, junto de crianças do 1º ciclo, contribuir para o sentido de pertença de todas as crianças nas suas comunidades envolventes, auto e hetero valorizando a sua identidade individual e a sua história coletiva, e a diversidade cultural e intercultural.
Foi criado um programa de formação, dirigido a crianças do 1º ciclo, mas também uma campanha de comunicação. Portanto, promover o envolvimento e a participação das crianças, assim como do corpo docente, foi um objetivo desde o início. Além disso, procurámos garantir que tanto as crianças como o corpo docente adquirissem as competências e ferramentas necessárias durante a implementação do programa de formação, para que, posteriormente e, após o término do projeto, pudessem ser agentes multiplicadores de mudança.
Relativamente à campanha de comunicação, o objetivo foi amplificar a voz destas crianças e, com isso, mobilizar não só os seus pares, mas também o público em geral, para as temáticas da igualdade de género, antirracismo, diversidade cultural e contra todas as formas de discriminação.
Por fim, disponibilizamos um Guia para uma Educação Antirracista, que integra as sessões de formação realizadas durante a implementação do Radika, bem como os materiais específicos criados para as sessões nas diversas temáticas — diversidade cultural, identidade de género, combate a todas as formas de discriminação — dirigido a pessoal docente e educadores para que possam ser replicados em qualquer contexto educativo junto de crianças do 1º ciclo.
De que forma o desenho deste projeto responde à promoção de uma educação antirracista?
Simone Longo de Andrade: O projeto é uma iniciativa de educação antirracista. Tal como a Joana mencionou, surgiu da necessidade de ir para além dos temas mais fáceis e cómodos, que costumam ofuscar e invisibilizar o debate sobre discriminação étnico-racial em Portugal. Sentimos a necessidade de aprofundar a compreensão do que é a discriminação étnica e racial, sem medo de incomodar. Trazer o tema do antirracismo implica reconhecer que não se trata apenas de “tratarmo-nos bem uns aos outros”, mas de perceber que estamos inseridos numa estrutura que alimenta e reproduz essas discriminações. Embora este assunto seja ainda incómodo para muitas pessoas e haver quem pense que as crianças não devem ser expostas a estas temáticas tão cedo – nós discordamos. O projeto Radika acredita que, se as crianças vivem os efeitos das discriminações no dia-a-dia, então devemos explicar-lhes o que é essa violência.
O projeto foi concebido para explicar às crianças o que é a estrutura racista da sociedade portuguesa e da sociedade contemporânea em geral, ajudando-as a compreender as violências discriminatórias que se vivem diariamente. Este trabalho foi feito de forma gradual, tendo como ponto de partida as experiências das crianças e a sua vivência escolar.
O projeto foi desenhado para acontecer ao longo de um ano inteiro na escola e os objetivos do Radika são bastante ambiciosos, precisamente porque estava previsto que o projeto se estendesse por todo esse período, com uma presença semanal em horário curricular, junto das turmas do 4º ano. No entanto, devido a questões de gestão de fundos, o projeto acabou por ser implementado apenas durante um período letivo, o que resultou numa concentração e condensação das atividades. Apesar disso, não abandonámos os nossos objetivos; apenas ajustámos as nossas expectativas. A ideia foi sempre tentar facilitar o máximo de ferramentas para compreender como funciona uma discriminação que é estrutural a uma sociedade, quais são as suas raízes e consequências.
Qual tem sido o feedback por parte dos alunos, professores e escolas onde o projeto foi implementado?
Joana Deus: Podemos identificar dois momentos distintos: a implementação do programa de formação e a campanha de comunicação.
Ao dinamizarmos a formação inicial deparamo-nos com alguns desafios. Não tanto pelas temáticas abordadas, que eram completamente novas e, muitas vezes, causavam estranheza, mas pela dificuldade de abstração e de reflexão sobre os temas que propúnhamos. Para além disso, sentimos, e acreditamos que não é exclusivo do projeto Radika, uma resistência ou dificuldade por parte dos alunos em refletir sobre o que lhes é pedido, no geral. Muitas vezes, limitam-se a serem meros recetores de informação e o processo de reflexão torna-se muito exigente. Por isso, as primeiras sessões de formação foram desafiantes.
No que respeita ao corpo docente com o qual trabalhámos, posso dizer que fomos muito privilegiadas, pois, num tempo recorde, conseguimos que este agrupamento de escolas acolhesse o projeto. Na verdade, temos uma relação realmente privilegiada com o Agrupamento de Escolas Patrício Prazeres, que sempre se mostrou muito aberto para trabalhar connosco, tanto estas temáticas como outras igualmente pertinentes. Este foi um caminho que fomos construindo em conjunto.
Creio que as crianças começaram a perceber a importância do que estavam a construir no final do projeto, sendo o tempo reduzido de implementação das ações um constrangimento sentido por todos os intervenientes.
A campanha de comunicação revelou-se muito importante para a autoestima destas crianças, pois perceberam que a sua voz era efetivamente ouvida e tinha relevância no processo. Elas tiveram a oportunidade de aparecer em MUPIs no metro, em cartazes espalhados pela cidade, algumas participaram num programa de televisão, e foram reconhecidas ao longo da implementação do projeto, tanto pelos seus pares, como pelo corpo docente e encarregados de educação. Tentámos sempre envolver o máximo de participantes no processo. Criámos um vídeo que resume o que foi discutido e refletido nas sessões, e esse vídeo foi divulgado nas redes sociais e partilhado por algumas figuras públicas que convidámos a participar, tanto na dinamização das sessões como na construção do vídeo da campanha. Este conjunto de ações resultou num final muito bonito para o projeto.
Houve uma valorização muito grande destas crianças, que foram o centro da campanha. Elas representaram o conhecimento que queríamos transmitir, o que as colocou numa posição de destaque. No final, partilhei com a Simone e com o resto da equipa que, se o nosso impacto se limitasse apenas a estas crianças, para mim, o trabalho já estava feito e o objetivo já estava cumprido.
Simone Longo de Andrade: Aproveito para reiterar o que a Joana disse, pois, para o bem e para o mal, a sensação que temos nestes projetos é que, feliz ou infelizmente, o resultado, por vezes, é deixar sementes em algumas pessoas, e é isso que nos dá alento. No entanto, se essas sementes não forem nutridas, não crescem. De forma muito sincera, a maioria dos projetos que trabalham temáticas antirracistas, ou discriminações de uma forma geral, no contexto escolar, são pouco políticos. Ou seja, focam-se na dimensão interpessoal, e não numa análise profunda da sociedade e na compreensão de como essas discriminações se alimentam e se perpetuam. Não estamos a investir numa mudança real, mas sim em mudanças nas relações interpessoais, com a lógica de que “somos todos iguais, somos todos diferentes, e se nos tratarmos bem, está tudo bem”. Mas a verdade é que nem sempre estará tudo bem, porque há questões que não dependem apenas de nós, ou não passam diretamente por nós.
A reflexão é importante. Precisamos trabalhar a história, conversar sobre a escravatura, o colonialismo, o tráfico negreiro e outros temas “difíceis”. Houve professoras que acharam que estávamos a trazer palavras e temas muito complexos, e foi interessante pensar em conjunto sobre isso. Embora os temas e as palavras pareçam difíceis, são trabalhados com e para as crianças. Sabemos que são temas complicados, e estamos conscientes disso. No entanto, não preciso que as crianças compreendam o colonialismo na totalidade no 4º ano, aos 10 anos, mas acho importante que já tenham ouvido falar do tema e que lhes tenha sido apresentado. É claro que ninguém ali irá entender plenamente o que é o colonialismo, talvez nem nós ainda o compreendamos tão bem como deveríamos. Mas, quem sabe, quando o tema surgir novamente no 5º ou 7º ano, já o ouvem de outra forma e com outra bagagem. Devemos respeitar a inteligência das crianças. Parece haver um certo receio em incentivar as crianças a pensar criticamente. Não precisamos começar logo a discutir temas como o colonialismo em profundidade, mas é essencial que lhes apresentemos tais palavras, ideias, factos históricos e as coloquemos a conversar. A ideia é ensiná-las a construir o diálogo.
Da experiência com a implementação do projeto Radika, qual a vossa perceção sobre os desafios encontrados na relação com os pais?
Simone Longo de Andrade: Tivemos algumas famílias envolvidas desta vez, principalmente devido à campanha de comunicação. A perceção que temos é pouco objetiva, porque se baseia nas famílias que estiveram mais próximas e mais envolvidas, uma vez que as crianças estavam a vivenciar experiências que as deixavam muito felizes. As crianças que participaram na campanha de comunicação, que viram as suas frases incluídas na campanha, que foram à televisão, tiveram famílias envolvidas, valorizando o que estava a acontecer. Contudo, sentimos que ainda existe uma lacuna. É muito difícil chegar às famílias, apesar de termos tentado envolver a família, tentando que as atividades desenvolvidas na escola chegassem às casas, pois o objetivo é sempre impactar também as famílias. Muitas vezes, entre uma sessão e outra, tentávamos criar ligações para que as crianças não estivessem apenas envolvidas durante aquela hora semanal, mas que houvesse uma continuidade. No entanto, num período escolar, isso é complicado, e mesmo ao longo de um ano letivo não sei se seria possível, mas haveria certamente mais oportunidade.
Quisemos trabalhar a história familiar, uma forma de ajudar as crianças a entender a noção de história e a perceber como um facto leva a outro, numa consequência. Perguntar “De onde vem a tua família?” ou “O que sabes sobre a tua família?” seria uma forma de despertar a curiosidade, de querer perguntar mais em casa. Criámos um diário de bordo para que as crianças registassem as suas reflexões e fizessem desenhos e anotações, com a ideia de que o diário fosse levado para casa e depois voltasse para a escola. No entanto, isso também não correu conforme o esperado. Realizar o projeto durante o primeiro período letivo tem vantagens e desvantagens: por um lado, os alunos ainda não estão cansados, mas, por outro, algumas coisas ainda não estão totalmente integradas na dinâmica escolar.
A interação e abertura às famílias é necessária, para o bem e para o mal. Noutros projetos em que trabalhei, já recebi feedback negativo, com encarregados de educação a irem à escola perguntar o que estava a ser discutido (um projeto sobre direitos LGBTI+). Infelizmente, este tipo de reação negativa pode vir a ser cada vez mais comum e precisamos de saber responder.
Neste contexto, é fundamental que a escola esteja profundamente comprometida com o projeto, para que o possa defender quando necessário. Este é um ponto crucial: o que estamos a promover, com o nosso projeto, são direitos constitucionalmente reconhecidos. Nada do que discutimos em termos de antirracismo, igualdade ou liberdade vai contra os valores do nosso país.
Joana Deus: Sentimos que a pandemia fez com que as escolas se fechassem e, no pós pandemia, ainda sentimos que esse distanciamento existe e que muitas das limitações impostas durante esse período não foram revertidas. Se as famílias estão afastadas da escola, acabam por estar também distantes do que se faz dentro dela, incluindo projetos como este. A mobilização e o envolvimento das famílias estão intimamente ligados à expectativa que os próprios encarregados de educação têm quanto à participação dos seus educandos na escola. Isso coloca-nos também numa posição mais distante dos encarregados de educação.
Simone de Andrade: Temos também de ser conscientes que estamos a promover pensamento crítico nas crianças, a introduzir reflexões e apresentar ideias que podem entrar em conflito com o que ouvem em casa. Isto é um ponto muito importante, pois temos de compreender que, para algumas crianças, essa divergência pode gerar uma fragilidade entre o que estão a aprender e o que é dito nas suas casas. Não é isso que queremos. O nosso objetivo não é criar mais um problema para a criança. Se estamos a incentivá-las a pensar, temos que ter cuidado para garantir que esse pensamento seja tratado com sensibilidade e respeito.
Precisamos olhar e (re)conhecer a realidade do país também. Existem muitas crianças que estão muito sozinhas e passam praticamente o dia todo sem a presença de adultos. Algumas são acompanhadas por irmãos mais velhos que ainda não são adultos, e tivemos contacto com essas situações. Esta é uma realidade crescente no nosso país, onde a precariedade é cada vez mais visível no quotidiano das crianças. Muitas estão na escola desde as 8 horas da manhã até às 7 horas da tarde, e depois, quando chegam a casa, muitas vezes nem vêem os pais, mães ou outros adultos responsáveis por elas. Acabam por ficar entregues às tecnologias, e a escola deve compensar esse uso excessivo.
Quando falamos de famílias, temos que questionar de que famílias estamos a falar, onde estão e como podemos chegar até elas. Não é uma questão com uma resposta simples ou linear. Claro que seria extraordinário conseguir envolver as famílias de forma mais ativa, mas nem sempre isso é necessário, ou possível ou mesmo desejável. E as crianças também precisam de ter espaços que sejam exclusivamente delas.
Como pensam continuar a dar vida ao projeto?
Joana de Deus: Isto foi uma preocupação desde a construção do projeto: queríamos testar um conjunto de sessões e partilhá-las, mas tínhamos questões muito claras em mente sobre como, com quem e onde essa partilha seria feita, bem como sobre o nível de conhecimento de quem teria acesso a essa informação e a forma como o iria transmitir. Estamos a lidar com questões muito sensíveis, que facilmente podem fugir à visão inscrita no Radika. Nesse sentido, construímos um Guia para a Educação Antirracista, que existe em formato papel e também está disponível online. Este documento inclui todos os planos de sessão, dicas para trabalhar esta temática com a família e na escola, bem como todos os materiais produzidos para realizar as atividades. Na fase final do projeto, distribuímos e enviámos este documento para todas as escolas do país.
O objetivo seria, naturalmente, continuar com esta intervenção tão pertinente. O Município de Lisboa demonstrou interesse em levar o Radika às várias escolas do Município, desejamos que esta possibilidade possa ser concretizada. Sabemos que é cada vez mais difícil obter financiamento para ações desta natureza, mas também temos certo que é cada vez mais necessário e urgente.
Estamos sempre disponíveis para ir às escolas e realizar sessões de esclarecimento sobre a implementação das sessões. No entanto, reconhecemos a realidade das escolas e sabemos que, na maioria das vezes, trabalham com muitos menos recursos do que seria necessário. Portanto, existem alguns constrangimentos para que este Guia possa ser efetivamente implementado em contextos educativos autonomamente.
Saiba mais sobre o projeto Radika e aceda aos recursos aqui.