LIGA-TE, um projeto de Educação para a Saúde

“Um projeto que pretende trabalhar a questão da prevenção do cancro, integrando diversas atividades ao longo do ano.”

Cristiana Fonseca é licenciada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, pós-graduada em Literacia para a Saúde e mestre em Educação para a Saúde. Coordena o Departamento de Educação para a Saúde da Liga Portuguesa Contra o Cancro – Núcleo Regional do Norte desde 1999 e acumula a coordenação do Centro de Formação desde 2016.

Como surgiu a ideia de criar o projeto LIGA-TE?

O projeto LIGA-TE é, na verdade, um sucedâneo de outro projeto que existia. A Educação para a Saúde na Liga Portuguesa Contra o Cancro começa muito cedo, mas, a determinada altura, na década de 80, compreendeu-se que era necessário criar uma estrutura para organizar tudo aquilo que a Liga fazia no Norte, no que dizia respeito à prevenção do cancro. Assim, em 1988, surge este departamento, numa altura em que tudo o que acontecia na Europa estava, em grande parte, relacionado com a prevenção tabágica, sobretudo em contexto escolar.

O consumo de tabaco e o cancro do pulmão sempre estiveram no topo das prioridades em termos de prevenção do cancro, o que é compreensível. A nível europeu, destacava-se um projeto intitulado Smokebusters Club, que consistia em clubes desenvolvidos em contexto escolar, promovendo uma maior identidade de grupo, cuja premissa passava por não fumar. Com recurso a financiamentos europeus, foi possível desenvolver esta iniciativa em Portugal, mais precisamente no Norte, e, em 1989, foi iniciado um projeto-piloto. Quando se perguntou aos alunos portugueses como deveria chamar-se um projeto com estas características, curiosamente, sugeriram o nome ‘Caça Cigarros’. Isto deveu-se, em parte, ao facto de ter acabado de estrear em Portugal o filme “Os Caça-Fantasmas”, que tinha estreado há alguns anos antes no Reino Unido, onde surgiram inicialmente os Smokebuster Clubs. Muito rapidamente, o projeto passou a chamar-se ‘Clube Caça Cigarros’. O logótipo foi inspirado no filme, mas, em vez de um fantasma, aparecia um cigarro. As coisas desenvolveram-se nessa lógica. Quando comecei a trabalhar na Liga, o ‘Clube Caça Cigarros’ estava a comemorar 10 anos. Durante esse período, tinha atingido centenas de escolas e milhares de alunos, mas tornara-se uma máquina muito pesada, e era altura de mudar.

Mantive o projeto durante alguns anos, até que apresentei um novo projeto – esse projeto foi o LIGA-TE. E porquê LIGA-TE? Uma das coisas que acontecia era que o ‘Clube Caça Cigarros’ estava demasiado associado à ideia de prevenção tabágica e, 10 anos depois, na década de 90, começámos a falar de promoção da saúde. Era muito complicado falar de promoção da saúde num projeto que abordava apenas um fator de risco. Assim, tentámos ultrapassar essa limitação do nome do projeto. Outro ponto relevante era que a Liga Portuguesa Contra o Cancro acabava por ficar escondida atrás do grande projeto ‘Clube Caça Cigarros’. Era muito comum chegarmos a qualquer lugar e as pessoas conhecerem o clube, mas não saberem que era a Liga que estava por trás. Quando iniciámos o novo projeto, pensámos em algo abrangente, por um lado, e que destacasse que era um projeto da Liga Portuguesa Contra o Cancro, por outro lado. Em cocriação com os professores, decidimos que LIGA-TE fazia sentido. Era um nome abrangente, porque podia significar “liga-te à prevenção”, “liga-te à promoção”, “liga-te à prevenção tabágica” ou “liga-te ao consumo alimentar saudável”.

Foi assim que, entre os anos de 2013 e 2015, o nome LIGA-TE foi surgindo tendo gradualmente substituído o ‘Clube Caça Cigarros’.

De que forma o desenho deste projeto responde à necessidade de promover a literacia em saúde, especificamente no que diz respeito à prevenção de cancro?

Diria que a grande diferença do projeto LIGA-TE, em relação a outros que existem – e cada vez há mais projetos neste âmbito em contexto escolar –, é a ideia de cocriação que está sempre subjacente. De facto, somos responsáveis por desenvolver um projeto que é apresentado em contexto escolar, mas é sempre uma apresentação que parte também das necessidades que a própria escola nos comunica. É quase um processo de monitorização contínua, em que vamos tentando perceber se aquilo que estamos a oferecer é, de facto, aquilo que as escolas precisam.

Esse é o grande toque diferenciador: o contacto personalizado. Não falo só em números; conheço o nome das escolas, dos professores, e mantemos contacto várias vezes ao longo do ano. Acho que isso dá às escolas uma perspetiva diferente sobre o LIGA-TE. Talvez seja aí que encontramos a justificação para o facto de que, apesar do aumento do número de projetos em escolas e das dificuldades que todos sabemos existir no contexto escolar – devido ao aumento da carga administrativa –, nunca tivemos uma redução no número de escolas. Muito pelo contrário. Os professores continuam a querer trabalhar de forma graciosa neste projeto, também porque o projeto tem uma causa por trás: a Liga Portuguesa Contra o Cancro. Paralelamente, outros aspetos que apresentamos como uma mais-valia incluem uma abordagem mais criativa. Para além da cocriação, a ideia não é fornecer apenas mais uma série de manuais ou atividades semelhantes às que já existem noutras fontes. O objetivo é sempre trazer um toque de criatividade, tirar algo “fora da caixa”, que não seja esperado, e, assim, dar aquele impulso que, ano após ano, no início do ano letivo, os professores precisam. Para quem trabalha com escolas, é fácil perceber que, no final do ano letivo, temos sempre professores desgastados, a dizer que, no ano seguinte, já não querem continuar com projetos porque estão muito cansados. Mas a verdade é que, no início de cada ano, quando lhes apresentamos o projeto, noto que saem das reuniões mais energizados, mais motivados e acabam por continuar a trabalhar no projeto. É esta a perspetiva que temos para trabalhar com os professores.

Da experiência com a implementação do projeto em contexto escolar, qual a sua perceção sobre os desafios encontrados?

Quando começámos o ‘Clube Caça Cigarros’ e, mais tarde, o LIGA-TE, estávamos numa era em que havia tempo reservado para projetos. E, mesmo que não fosse especificamente para projetos, existiam horas livres, o que tornava relativamente simples integrar atividades extracurriculares. Hoje em dia, é cada vez mais difícil, porque os horários estão muito sobrecarregados e, mesmo quando as escolas conseguem reservar tempo para projetos, dependendo do contexto, notamos que há alunos menos disponíveis. Por exemplo, em contextos urbanos, percebemos que os alunos têm horários extremamente preenchidos e, por isso, a última coisa que desejam é ficar mais uma hora na escola, envolvidos num projeto, quando, provavelmente, têm atividades mais atrativas fora do recinto escolar.

Por outro lado, há a questão da concorrência. Atualmente, existem muitos mais projetos em curso. Alguns, embora não sejam muito diferentes do LIGA-TE no que oferecem, têm uma vantagem em relação a nós: o apoio ministerial. E, quando ouço os professores a falar, percebo que trabalham dinâmicas de grupo semelhantes às que desenvolvemos. Talvez não tanto no LIGA-TE, mas no outro projeto paralelo do nosso departamento, intitulado ‘Jovens Promotores de Saúde’, que trabalha com experiências imersivas, partindo da ideia de trabalhar com pequenos grupos de alunos que, posteriormente, irão intervir no contexto escolar.

E qual é a grande diferença? O LIGA-TE e o ‘Jovens Promotores de Saúde’ são projetos regionais da Liga Portuguesa Contra o Cancro, sem o apoio do Ministério da Educação. A Liga Portuguesa Contra o Cancro é uma entidade nacional, mas composta por núcleos regionais. Temos projetos nacionais que possuem a chancela do Ministério da Educação, bem como da Direção-Geral da Saúde e da Direção-Geral da Educação. No entanto, no caso do LIGA-TE e dos ‘Jovens Promotores de Saúde’, por serem projetos regionais, beneficiaram, no passado, do apoio das direções regionais de educação. Com a extinção destas, tornou-se mais difícil obter esse apoio.

Apesar disso, conseguimos, mesmo sem apoio ministerial, alcançar mais de uma centena de agrupamentos escolares.

Após a implementação do projeto, que feedback tem recebido da comunidade educativa?

É sempre muito positivo. Precisamente porque procuramos desenvolver o projeto num processo de cocriação, respondendo às necessidades das escolas e, em paralelo, oferecendo atividades mais criativas; acabamos por receber feedback muito encorajador. Claro que, nos 120 agrupamentos com que trabalhamos, há realidades distintas. Existem agrupamentos que adotam as ideias mais inovadoras e criativas – ainda que mais trabalhosas – e fazem algo fantástico e fabuloso. Por outro lado, há escolas que preferem manter uma abordagem mais clássica, mas isso não é um problema. Tanto umas como outras reconhecem que a proposta é boa e fazem o melhor possível com os recursos que têm.

Uma característica diferenciadora dos nossos projetos, e que considero uma vantagem, é não estarmos subordinados a regras impostas por nenhum Ministério ou instituição mais estruturada. Não temos uma avaliação obrigatória subjacente, e as escolas não são forçadas a seguir um conjunto rígido de regras. Por exemplo, este ano a proposta do projeto é: “Vamos fazer xeque-mate ao cancro.” Este xeque-mate ao cancro está relacionado com o jogo de xadrez. Numa reunião inicial com os professores, destaquei que, enquanto Liga, sentimos que faz falta os alunos compreenderem melhor o que é o cancro. Propusemos abordar este tema através do jogo de xadrez, mas não com a ideia de jogar xadrez “a sério”. A ideia era olhar para um tabuleiro de xadrez e, a partir daí, refletir sobre o cancro e as estratégias para o combater. É uma lógica de comparação. Se, do outro lado do tabuleiro, o rei representa o cancro, então, do nosso lado, quem ou o que é o rei? Que estratégias podemos usar para combater o cancro?

Mesmo sem saber jogar xadrez, mas conhecendo as regras das peças, conseguimos fazer esta analogia. O rei, sendo a peça mais importante e, ao mesmo tempo, a mais vulnerável – aquela que deve ser protegida, pois, se for capturada, o jogo termina –, pode simbolizar a saúde. E a rainha, por ser a peça mais poderosa, que se pode movimentar em todas as direções, pode assumir diferentes interpretações, dependendo de quem observa o tabuleiro. Por exemplo, quando apresentei esta ideia aos professores, sugeri que a rainha fosse a Liga Portuguesa Contra o Cancro, porque desempenhamos múltiplos papéis: trabalhamos na área da prevenção, realizamos rastreios, apoiamos doentes… Enfim, protegemos a saúde, o “rei”. Com este par estabelecido, os professores podem refletir sobre quem ou o que representam as outras peças.

A proposta era que as escolas iniciassem o plano do LIGA-TE com esta abordagem. Não se tratava de jogar xadrez, mas sim de levar o tabuleiro de xadrez para a sala de aula como ferramenta pedagógica. Claro que houve professores que abraçaram rapidamente a ideia e outros que se mostraram mais resistentes, considerando-a complexa. Tivemos de tudo um pouco: professores que foram buscar tabuleiros de xadrez e começaram a jogar xadrez com os alunos, trabalhando a saúde; professores que fizeram um tabuleiro de xadrez gigante no átrio da escola e usaram-no para abordar o tema; professores que nos disseram que queriam implementar a ideia, mas não sabiam como. Para esses casos, disponibilizámos uma hora para realizar uma ação de sensibilização e fomos nós à escola, numa abordagem mais clássica, mas sempre com o xadrez como base. Esta flexibilidade é uma das razões pelas quais a comunidade educativa nos acolhe e responde tão positivamente.

O LIGA-TE é um projeto que pretende trabalhar a questão da prevenção do cancro, integrando diversas atividades ao longo do ano. É quase como se tivéssemos um currículo para a prevenção do cancro. Em outubro, trabalhamos o cancro da mama no âmbito do ‘Outubro Rosa’. Em fevereiro, abordamos o cancro de forma mais geral no Dia Mundial do Cancro. Apesar de sabermos que as efemérides, por si só, não constituem um projeto de educação para a saúde, as escolas tendem a assinalá-las, e isso facilita a nossa integração nas iniciativas que já desejam realizar. Por exemplo, o ‘Outubro Rosa’ é sempre uma iniciativa marcante no início do ano letivo. É muito colorida e envolve um grande empenho das escolas – não apenas do professor com os alunos, mas também dos outros professores e da comunidade educativa em geral. Temos escolas que mobilizam toda a comunidade em torno desta iniciativa, que, atualmente, já ganhou vida própria.

O mais gratificante é perceber que o projeto está a ultrapassar fronteiras. Quando vemos que algo já passou para “o lado de lá” e ganhou vida própria, sabemos que o nosso trabalho fez a diferença.

Quais os próximos passos do projeto e de que forma é que as escolas podem usufruir do mesmo?

Quanto aos próximos passos, neste momento ainda estou a pensar no ano letivo de 2024/25. Começo a idealizar o próximo ano letivo apenas por volta de abril ou maio, quando começo a sonhar com o que poderá ser desenvolvido. Relativamente à participação das escolas, reunimos com os professores no final de cada ano letivo para um momento de avaliação e para antevermos o que poderá ser feito no ano seguinte. Em setembro, apresentamos o projeto às escolas, formalizamos o processo de inscrição e entregamos os materiais de trabalho, ou seja, tudo o que criamos especificamente para as escolas. Isto significa que, teoricamente, a dinâmica de inscrição está concluída nesse período. Contudo, digo “teoricamente” porque, se surgir uma escola muito interessada em começar a trabalhar connosco, mesmo fora desse prazo, não lhe vamos fechar a porta. A partir da inscrição, inicia-se um processo de integração naquilo que chamamos a “família” do projeto, onde procuramos perceber como cada escola funciona e como podemos melhor colaborar.

Em termos de próximos passos, ainda não temos planeado o próximo ano letivo em concreto. Contudo, enquanto equipa, temos vindo a refletir sobre o futuro do projeto em si. A nossa intenção é continuar com a dinâmica já estabelecida – as reuniões de julho e setembro, um tema anual, e as várias atividades propostas. No entanto, analisando a realidade das escolas, acreditamos que precisamos de ser mais audazes, especialmente no que diz respeito à forma como trabalhamos com a Comunidade. Sentimos que é necessário oficializar mais as parcerias. Atualmente, trabalhamos sobretudo através dos coordenadores de Educação para a Saúde e dos Programas de Educação para a Saúde das escolas. No entanto, em muitos casos, como já conhecemos os professores há vários anos, o contacto com as direções escolares acaba por ser relativamente simples. O que pretendemos agora é intensificar este contacto direto com as direções, não apenas para uma avaliação mais personalizada das necessidades de cada escola, mas também para percebermos como podemos colaborar de forma mais eficiente.

Através das direções escolares, pretendemos alargar a nossa ação às forças vivas da comunidade, incluindo os Conselhos de Escola, que integram representantes de vários grupos comunitários, não apenas professores e alunos. Acima de tudo, acreditamos que é essencial criar sinergias. A nossa intenção não é que o projeto seja visto como concorrente de outros; não queremos que as escolas sintam que precisam de optar entre o nosso projeto e outros já existentes. O objetivo é que o nosso projeto acrescente valor ao que já está a ser desenvolvido. Por exemplo, se uma escola tiver uma boa parceria com o centro de saúde e um trabalho bem estruturado a nível de saúde escolar, não há qualquer razão para não trabalharmos em conjunto com essa equipa de saúde escolar. Pelo contrário, o ideal é trabalharmos de forma articulada, em vez de atuar em competição ou em paralelo, sem qualquer interação. Este será o grande objetivo para os próximos anos: fortalecer a articulação e a interação com outros projetos e entidades.

A Liga Portuguesa Contra o Cancro é uma entidade sem fins lucrativos, sem qualquer apoio estatal, e dependemos dos donativos e do contributo da Comunidade. É fundamental garantir algum tipo de financiamento extra, especialmente num contexto económico tão desafiante como o atual, em que não podemos depender exclusivamente de um peditório nacional, embora este nos tenha corrido sempre muito bem.

Ainda assim, a Instituição tem-nos alertado para a importância de procurar outros tipos de financiamento, nomeadamente fundos europeus. Esta é uma estratégia que temos vindo a explorar. No ano passado, pela primeira vez, realizámos um projeto Erasmus+, que nos proporcionou um financiamento importante e permitiu desenvolver um trabalho de qualidade e inovador com as escolas. Este é um caminho que precisamos de continuar a seguir e aprofundar nos próximos anos.

Conheça o projeto LIGA-TE here!

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