Estamos a levar a ciência a diversas regiões do país, através da realização de atividades práticas com cientistas.
Como surgiu a ideia de criar o programa “Cientista Regressa à Escola”?
Joana Bordalo: O programa Cientista Regressa à Escola nasceu da vontade de promover o acesso à ciência em Portugal, especialmente em regiões onde esse é mais limitado. Isto pode dever-se ao isolamento geográfico ou ao facto de muitas famílias não terem o hábito ou a possibilidade de levar as crianças a centros de ciência, por exemplo.
No fundo, tanto eu como a Joana Moscoso – eu sou de Lisboa, e a Joana é de Valença do Minho – reconhecemos, a partir da experiência dela, as dificuldades que muitas crianças têm em contactar com cientistas desde cedo. Por isso, quando começámos a trabalhar juntas na Native Scientists, foi muito natural desenvolver um conceito inserido num programa educativo que permitisse a crianças do 4.º ano de escolaridade contactar com cientistas. O objetivo era que estes profissionais pudessem servir de exemplo, mostrando que o ensino superior e a ciência são acessíveis e podem ser aspirações viáveis.
Daí nasce o conceito de um/a cientista que regressa à escola – uma pessoa que atualmente contribui para o avanço do conhecimento científico e que regressa à sua terra natal para retribuir à comunidade e empoderar as crianças locais. Ao partilhar a sua experiência, mostra-lhes que a ciência e o ensino superior são possibilidades reais ao seu alcance.
A ideia de realizar atividades práticas nas escolas não é, por si só, disruptiva. No entanto, fazê-lo de forma sistemática, com um verdadeiro alcance nacional – sobretudo com foco nas zonas periféricas e mais isoladas –, isso sim foi inovador. O conceito de “educação circular”, em que o cientista regressa à sua comunidade de origem e serve de inspiração a crianças que se podem ver refletidas nessas histórias, distingue este programa. Muitas vezes, os programas educativos promovidos pelas universidades têm um alcance local, beneficiando sobretudo as escolas da cidade onde se inserem. O nosso objetivo foi expandir essa lógica e romper com essas barreiras geográficas.
De que forma o desenho deste projeto responde à promoção da literacia científica e ao combate aos estereótipos relacionados com a ciência e os cientistas?
Joana Bordalo: Promovemos a literacia científica porque, efetivamente, estamos a levar a ciência a diversas regiões do país, através da realização de atividades práticas com cientistas que, no seu dia-a-dia, desenvolvem investigação científica e regressam às suas terras para dinamizar essas atividades com as crianças. No fundo, trabalhamos os mais variados temas e áreas do conhecimento — desde a microbiologia, à astronomia e às ciências sociais — todas têm tido lugar no nosso programa. O que fazemos é trazer a ciência das universidades e dos centros de investigação para as escolas, para dentro das comunidades, colocando a ciência no centro das conversas do dia-a-dia, tanto entre os alunos como entre as suas famílias.
Por outro lado, o facto de envolvermos cientistas de todas as áreas do saber, em diferentes fases das suas carreiras, também contribui para combater o estereótipo de que a ciência é feita apenas por pessoas como Einstein — homens de cabelos brancos e despenteados. A ciência é feita por homens e mulheres, por pessoas mais jovens, que estão a iniciar a sua carreira, e por outras que já percorreram um longo caminho académico. Ao mostrar quem faz ciência, e ao dar palco à diversidade de áreas e de perfis, estamos não só a combater estereótipos sobre quem pode ser cientista, como também a promover ativamente a literacia científica.
João Medeiros Silva: Concordo inteiramente com a Joana. O simples facto de as crianças verem um cientista “a sério” ajuda a desmistificar quem pode ser cientista. Ao verem que pode ser um homem, uma mulher, alguém jovem, perceberem o que realmente faz um cientista — porque o estereótipo é que os cientistas só fazem explosões — e começam a construir uma imagem mais realista. Por exemplo, eu explico-lhes o meu trabalho enquanto bioquímico: investigo medicamentos e proteínas. As crianças percebem, então, que os cientistas não fazem apenas experiências “espetaculares”, mas trabalham em coisas muito concretas, como desenvolver medicamentos. Mostro-lhes fotografias dos meus colegas de laboratório — onde, felizmente, temos um grupo bastante equilibrado em termos de género — para que vejam que qualquer pessoa pode ser cientista. Como a Joana dizia, não é só o “senhor de cabelos brancos em pé”.
Uma das partes mais importantes é que as crianças veem que um cientista pode ter vindo daquela mesma sala de aula. Como estou a visitar a escola e a região onde cresci, os alunos conseguem identificar-se comigo. Partilho com eles as minhas experiências de infância, muitas delas semelhantes às que eles próprios vivem, e isso ajuda-os a perceber que também podem seguir esse caminho.
Em termos de literacia científica, o programa oferece uma oportunidade única a alunos de zonas mais remotas — ou até em contextos urbanos onde não têm acesso a museus ou a atividades científicas — para terem contacto direto com um cientista verdadeiro. Acredito que é uma experiência marcante. Lembro-me de algumas atividades particularmente fora do comum, que ficam na memória das crianças. Conhecer um cientista pela primeira vez pode ser altamente impactante. Aproveitamos esse momento para introduzir conceitos científicos — que, embora básicos para nós, são avançados para as crianças. O objetivo não é que compreendam logo o que é uma molécula, o pH, a fórmula da água ou do dióxido de carbono. Mas o contacto com esses conceitos desperta-lhes a curiosidade. E, quando mais tarde se deparam com eles novamente, prestam mais atenção, tentam perceber melhor. Isso gera interesse — e é aí que a escola pode agarrar essa motivação.
Qual tem sido o feedback obtido por parte dos alunos, dos professores e das escolas onde têm implementado o projeto?
João Medeiros Silva: Do lado dos alunos, temos observado que, antes da atividade, lhes perguntamos o que gostariam de ser no futuro e, no final, é curioso ver como as respostas mudam — de repente, todos querem ser cientistas. Claro que isso não significa que todos venham a seguir uma carreira científica, mas demonstra que muitos passam a considerar essa possibilidade com entusiasmo. Isto também nos permite mostrar que há muitas formas de ser cientista ou aplicar a ciência. Por exemplo, se uma criança diz que quer ser polícia e cientista, explicamos que existe a área da polícia forense, que conjuga os dois mundos.
Joana Bordalo: Queria acrescentar que muitos professores nos dizem que, para eles e para os seus alunos, esta é a primeira vez que têm contacto com determinados materiais ou recursos que normalmente não estão disponíveis na escola. Os cientistas trazem materiais dos seus próprios laboratórios para dinamizar as atividades práticas, o que representa uma grande mais-valia. Tal reflete-se na avaliação de impacto do programa, quando percebemos que, para cerca de dois terços das crianças, esta é a primeira vez que conhecem uma pessoa cientista. Isto sugere que, sem o programa, esse contacto só ocorreria muito mais tarde no percurso escolar.
Do lado dos cientistas, o feedback também tem sido excelente. Existe um sentimento de nostalgia e de gratidão por regressarem às suas origens e poderem retribuir aquilo que a sua terra lhes deu e que lhes permitiu chegar onde estão hoje. Eu sou suspeita, claro, mas temos tido um retorno muito positivo.
Os alunos adoram, e é particularmente marcante quando a pessoa que vem dinamizar a oficina é um ex-aluno daquela escola — os estudantes sentem-se representados e conseguem rever-se nessa pessoa. Lembro-me de uma oficina num bairro social em Lisboa que foi particularmente interessante: o cientista, em vez de começar por dizer onde estudou, fez o oposto, contou primeiro onde trabalhava atualmente e depois perguntou às crianças de onde achavam que ele era; muitas disseram que devia ser do Porto ou dos Estados Unidos da América, mas quando revelou que tinha estudado naquela mesma escola e vivia naquele bairro, as crianças ficaram completamente surpreendidas. Isso teve um impacto muito forte.
É também surpreendente para muitas crianças perceberem que alguém, como o João, que é natural de São Miguel, nos Açores, está agora a trabalhar no MIT, nos Estados Unidos da América, num instituto de investigação altamente conceituado.
Às vezes, no final da oficina, há crianças que perguntam: “Cientista, eu também posso ser cientista?”. E é nesse momento que penso: missão cumprida, a mensagem passou!
João Medeiros Silva: Só queria acrescentar que, da parte dos meus colegas de laboratório aqui nos Estados Unidos da América, há sempre surpresa quando lhes conto que, ao longo do meu percurso em São Miguel, nunca tive acesso a apresentações ou atividades com cientistas. A realidade aqui é bastante diferente — as crianças, desde o 2.º ou 3.º ano do primeiro ciclo, já têm contacto regular com a ciência. Isso não era de todo a realidade nas escolas que frequentei.
Da experiência com a implementação do projeto “Cientista Regressa à Escola”, qual a Vossa perceção sobre os desafios encontrados?
Joana Bordalo: O maior desafio é, sem dúvida, assegurar financiamento a longo-prazo para que o projeto possa manter-se ativo no tempo e abranger todo o território nacional. Sendo uma iniciativa de impacto social, dependemos de fundos que garantam a sua continuidade nas várias regiões do país. E a verdade é que, em Portugal, conseguir e manter este tipo de financiamento é um desafio real. Digo isto com total transparência: se temos tantos cientistas disponíveis e se a maioria das escolas quer recebê-los, o único obstáculo são, de facto, os constrangimentos financeiros. De facto, ao nível da implementação nacional do projeto, diria que o interesse por parte dos cientistas é enorme. Todos os dias recebemos inscrições de cientistas de várias regiões do país, a manifestar o desejo de participar no programa, regressar à sua terra natal e inspirar a próxima geração de crianças. Sempre que contactamos as escolas onde esses cientistas estudaram, quase todos os professores respondem de forma muito positiva. Há um grande entusiasmo em receber novamente alguém que ali estudou, e sentem um verdadeiro orgulho em acolher essas pessoas.
João Medeiros Silva: Do ponto de vista do cientista que participa no programa, reconheço que as limitações financeiras são um desafio, mas há também uma enorme vontade de contribuir e regressar à escola de origem. Para mim, enquanto cientista, o objetivo principal é avançar o conhecimento científico — e esta é uma forma de ter impacto direto na sociedade. Se estas crianças aprenderem um pouco mais sobre ciência e, no futuro, forem mais fluentes em conceitos científicos, isso já é uma vitória pessoal e um contributo para o avanço da ciência a longo-prazo.
No que diz respeito aos desafios durante a atividade em si, destacaria a logística, os recursos disponíveis e, sobretudo, a linguagem utilizada. É fundamental preparar bem a forma como comunicamos com as crianças. Não podemos usar uma linguagem demasiado técnica, mas também não queremos que o discurso seja excessivamente simplista ou infantilizado. Há que encontrar um equilíbrio: uma linguagem acessível, que desperte o interesse das crianças e as motive a tentar compreender o que lhes estamos a transmitir. Para mim, esse é um dos aspetos mais exigentes — tornar a atividade cativante sem perder o rigor e respeitando sempre a inteligência das crianças.
Quais os próximos passos do projeto e de que forma é que as escolas e outras entidades de ensino podem usufruir dos resultados do mesmo?
Joana Bordalo: Em termos de passos futuros, o nosso objetivo é continuar a expandir o programa para mais regiões do país e tornar Portugal o primeiro país do mundo onde todas as crianças conhecem um ou uma cientista da sua terra natal, antes de transitarem para o segundo ciclo. É essa a visão que nos guia. Na primeira edição do programa participaram 15 cientistas. Desde então, temos vindo a duplicar esse número. Nesta quarta edição, são já 100 cientistas a regressar às suas escolas de origem, em todo o país. Esperamos que no próximo ano possamos dizer que são 200 cientistas envolvidos, a atuar por todo o território nacional. O objetivo é continuar a alargar o alcance do programa, envolvendo cada vez mais cientistas, representando mais instituições de investigação e desenvolvimento, e abrangendo um número crescente de municípios. Este ano, atingimos uma meta muito importante: conseguimos chegar a todas as ilhas habitadas do país — às nove ilhas dos Açores e às duas da Madeira —, e a quase todos os distritos do continente. Para o próximo ano, a ambição é chegar finalmente a todos os distritos de Portugal.
Para os cientistas, este programa representa uma oportunidade de tornar o seu trabalho mais acessível e colocá-lo ao serviço da comunidade. Para os professores, é uma forma de criar uma ponte com profissionais altamente qualificados que um dia também passaram pela sua escola. Para os municípios, é uma oportunidade de promover a literacia científica, acolhendo um programa com inovação e impacto social. Ou seja, todas as entidades envolvidas beneficiam, direta ou indiretamente, da implementação do programa.
O contacto pode ser feito através do nosso website ou das redes sociais. Temos uma secção específica para cada perfil: cientistas que queiram inscrever-se e demonstrar interesse em participar; professores e escolas que desejem receber o programa em anos letivos futuros; e, municípios que pretendam perceber como viabilizar a sua implementação na sua localidade ou concelho.
João Medeiros Silva: Acho que o programa está a crescer na direção certa. Da minha parte, o que posso fazer é partilhar e divulgar esta iniciativa junto de outros colegas cientistas. Já convidei dois colegas que entretanto se juntaram ao programa e acredito que esta lógica de partilha e de envolvimento contínuo é o caminho certo para chegarmos a cada vez mais pessoas.
Conheça o programa Cientista Regressa à Escola dos Native Scientists here!