Vivências de profissionais da educação em Portugal.
O que recorda sobre o seu percurso desde a formação como professora até ao início da carreira como tal?
Fiz o curso de Matemática, via profissional, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, onde os professores estavam cientificamente preparados, mas didaticamente e pedagogicamente apresentavam muitas falhas, e por isso foi um processo muito doloroso. Quase parecia os anos do “antigamente”, em que eram meros transmissores e nós meros recetores. Foi tão doloroso que estive quase um semestre sem ir às aulas e depois de repente tive um click, voltei e fiz 5 cadeiras de seguida com a ajuda das minhas colegas, que me ajudaram a orientar o estudo. Posso dizer que memorizava a maior parte dos conteúdos em Matemática e depois tentava aplicar aquilo que era pedido, não foi um processo fácil.
A experiência de estágio já foi melhor. Fiz estágio numa escola, onde tive uma turma do 3o ciclo de escolaridade, onde a minha orientadora não ia assistir a todas as aulas, avisava quando ia estar presente, e onde íamos de vez em quando a uma aula do 10o ano da orientadora e aí ela assistia do princípio ao fim. Preparávamos a aula, mostrávamos primeiro a nossa intenção, os objetivos, e admito que saí do estágio melhor preparada do que da faculdade. O meu primeiro ano a dar Matemática, já depois da experiência de estágio e de uma primeira experiência como professora de Ciências, foi num Colégio, sempre com turmas de ensino básico e secundário.
Entretanto o programa de 12o ano mudou e, a primeira vez que o dei, ainda eram coisas que tinha aprendido no 12o ano mas nem sequer tinha ouvido falar delas durante a faculdade e tive que as recordar. Houve depois uma alteração, que até hoje prevalece parte dela, que nunca tinha dado nem no secundário nem na faculdade e tive mesmo que estudar por mim e quando tinha dúvidas perguntava, assim como com os alunos – se não soubesse dizia ‘Não sei mas vou saber, aguardem que vou saber’.
Há competências que são fundamentais, a nossa força anímica, o que transmitimos aos alunos, e o respeito deles vem daí; ou seja, o amor que temos pelos alunos depois recebemos em dobro, mas eles têm de nos reconhecer verdade, lealdade, capacidade de trabalho. Só por isto é que somos respeitados, porque sabemos algumas coisas mas quando não sabemos surge a tal verdade e a tal lealdade, nunca tive problemas nesse sentido.
Qual a sua opinião sobre as principais preocupações vividas pelas crianças e jovens?
São seres absolutamente pensantes, tenho muito respeito pelos alunos. A preocupação dos alunos, de uma forma geral, é a estabilidade familiar em termos de saúde e emprego. Como qualquer pessoa, lidam mal com a morte, têm muito medo da perda, e estes aspetos têm impacto nas aprendizagens. Preocupam-se muitas vezes com o que não acontece, com coisas que estão fora do seu controlo, perdem muito tempo com isso, o que se nota no decorrer das aulas. Ainda agora uma aluna veio falar comigo, dar-me um beijinho e um abraço porque foi a última aula, e falei-lhe que tinha descido muito a nota desde o 1o período e ela partilhou que passou o tempo a pensar nos avós que estão no Brasil, o que claramente a afetou no desempenho escolar.
A questão dos hobbies dos alunos preocupa-me; têm hobbies muito específicos, à distância de uma tecla, dormem muito pouco e não exteriorizam, vou sabendo das coisas pela diretora de turma. Os alunos perdem horas e horas na internet, nos jogos, horas que podiam estar a aproveitar para fazer outras coisas, por exemplo, para a escola, para ler um bom livro ou ver um bom filme, podiam aproveitar para estar ao ar livre a fazer qualquer coisa, interagirem uns com os outros.
Depois há o facto de que não gostam de estudar, mas o ensino também não é apelativo. Achava que se a turma fosse mais pequena teria melhores resultados mas não, quando é mais pequena permite outro ritmo de trabalho, há outras hipóteses para aprenderem melhor, para nós também transmitirmos melhor e aprendermos com os alunos, mas não é evidente que haja sucesso, não quer dizer que o processo de aprendizagem aconteça. A própria sala de aula não é um local muito agradável, só não estamos no estrado porque já não há estrado; tentamos andar pela sala e pelo meio dos alunos, agora que já se pode, mas com turmas de 28 a 30 alunos se um vai ao quadro e outro faz-lhe uma rasteira, mais vale não ir ao quadro e evitar uma desestabilização total. Por outro lado, a Matemática é treino e ou se é um Messi, que nasce com um dom, ou então temos que ser mais como o Ronaldo e trabalhar muito mas os alunos não têm capacidade de trabalho.
Como avalia as oportunidades de desenvolvimento profissional para professores?
No que toca à formação de professores, às vezes não corresponde às expectativas e outras vezes temos grandes surpresas. Se até agora tem sido muito proveitosa para aplicar nas aulas? Uma por outra sim, a maior parte não, a maior parte nem muito boa é. Fazemos porque temos de fazer, porque temos de ter 25 horas de formação para passar de escalão e muitas vezes não passamos.
Ás vezes posso fazer 25 horas numa área que não tenha a ver com a minha disciplina, e algumas são muito boas, são mais transversais, mas depende sempre muito do formador. Se põe um formador desinteressante a dar uma ação de formação, vê-se uma turma de 30 professores piores que os alunos e não é pelo grau de exigência que temos, é que não nos interessa e, em vez de dizermos, aproveitamos para falar com o colega do lado, fazemos exatamente igual aos alunos, e se for preciso também copiamos como eles.
Como viveu o processo de passagem abrupta para um “ensino remoto de emergência”?
Foi a primeira vez em que não fomos avessos à mudança. Tinha que ser. Por mim foi simples porque a mudança fez sentido. Acho que todos nós, exatamente porque tinha que ser, aderimos muito bem e tratamos de aprender o que tínhamos a aprender.
Nós entramos em confinamento a 16 de março de 2020, fui começando a aprender a trabalhar com o Zoom com a ajuda do meu filho e, entretanto, desafiei uma colega de Português a dar comigo uma aula interdisciplinar a uma turma que temos em comum e que eu sabia que iriam aderir, e assim foi – eles entraram todos na aula online e correu muito bem. Neste período de tempo aprendi imenso com os alunos que têm muito mais competências digitais que nós e essa primeira experiência online foi uma grande ajuda para o que depois se tornou o normal a partir de maio.
O que tem que ser tem muita força, o que não tem que ser é difícil para a nossa classe, é uma classe que não se sente respeitada por ninguém, cansada, quase esgotada, farta; eu, por exemplo, só não estou farta dos alunos e das aulas em si – as aulas passam a voar -, tudo o resto é horrível, a reforma tinha sido já ontem, é muito cansativo.
O que gostaria de ver mais e de ver menos na sua profissão em Portugal?
Gostaria que o ensino fosse efetivamente diferente, eu sei que o paradigma mesmo assim já mudou, não tenho dúvidas que as regras hoje em dia são outras.
Gostaria que houvesse uma liberdade responsável diferente, gostaria de ver os alunos num ambiente diferente, mais descontraído, onde as aulas pudessem ser cá fora, onde nós tivéssemos tempo para mostrar a importância real dos exercícios, termos o tempo que não temos porque temos um programa para cumprir e temos que justificar porque é que não o cumprimos. Nunca me arrisquei a dizer que não fiz isto ou aquilo porque decidi ir mais a fundo noutra parte do programa, ainda não tive essa coragem, mas qualquer dia é o que faço. Estes dois anos vi como é bom não ter exame, porque dei exatamente aquilo que é essencial para o secundário e deixei muita coisa para trás, que nunca poderia ter posto para trás se houvesse exame mas que na realidade não interessa para nada. A prova de aferição não serve para nada, têm os resultados e não vão aferir nada até porque a informação não chega às escolas secundárias para onde os alunos vão; aferir durante o ano faz todo o sentido para se colmatar e para se melhorar, agora no final do ciclo não faz sentido.
Gostaria muito que a avaliação fosse evidentemente diferente, mas para isso até as mentalidades era preciso mudar, o momento de teste, de escrita, de avaliação; faz muita falta aos alunos, porque se não tiverem testes ficam com a sensação de que não aprenderam nada. Retirava as grelhas, é um sistema castigador, os alunos hoje em dia são nomes em grelhas de Excel, devia haver uma proximidade diferente, esquecem-se que nós somos anteriores aos alunos e mais nada, não somos superiores nem inferiores.
Gostaria que o peso dos critérios de avaliação também mudasse e que não fosse preciso avaliar tudo o que ensinamos, ou que nós tentamos ensinar. Às vezes saio das aulas a pensar que não ensinei nada, por isso estou desmotivada, e eles percebem porque participam na aula, que estão no caminho para aprender, mas depois falta-lhes o tempo e o esforço.
Gostaria que a avaliação dos professores fosse diferente, gostaria muito; que a profissão fosse mais bem paga, podem dizer que já sabia que ao escolher a carreira docente que ia ganhar pouco, que comparativamente com o salário médio em Portugal não é pouco, mas permitiram-me, sem fantasias da minha parte, ter um nível de vida médio e depois tiram muita coisa; talvez voltar ao que era há alguns anos atrás, talvez ganhássemos mais auto-estima, estamos muito desiludidos com a profissão. Também gostava que o programa não mudasse constantemente, porque quando estamos a consolidar algumas atividades e depois tiram-nos o tapete e temos que recomeçar outra vez; o que é que nos interessa medir aqui o nível de neve? Nós não temos neve, não precisamos, não estamos na Suíça. Há várias atividades muito interessantes que os manuais já propõem, mas com alunos em frente ao computador, todos com folhas de Excel à frente; gostaria que os alunos não tivessem folhas de Excel.
Os alunos são maravilhosos e o motivo porque continuo. Acho que mal os alunos entram para a escola começam a perder faculdades; é tudo tão espartilhado, aqueles milhares de pensamentos que eles têm, milhares de ideias, exploração, imaginação, criatividade, perde-se, ficam formatados. Sabem muito de Matemática e Biologia mas de resto zero, não sabem nada, não viram nada, não leram nada, não conviveram nada, não viveram; é isso que acho que falta às escolas, as oportunidades dos alunos saírem, verem o mundo, por exemplo através do programa Erasmus, sair com qualidade e com sentido. As poucas atividades que faço, têm de fazer sentido, adaptadas ao que os alunos precisam de saber para prosseguir os estudos, que é assim que se deve pensar, não é fazer por fazer.
Gostava que muitos professores também mudassem, a classe não faz nada, enfim, eu nem a mim me defendo, quanto mais aos professores. É muito cada um por si mas não por maldade, cada um por si é para ter menos trabalho, há muito cansaço, não partilho os meus testes porque nem me lembro, mas se alguém me pede envio tudo e mais alguma coisa e fazem-me o mesmo a mim, não é por maldade é porque há muito desgaste na profissão e depois há muitas baixas porque alguns não aguentam.
Os professores não são maus profissionais, o ensino em Portugal não é assim tão mau quanto isso, mas os alunos já estão a precisar de outro modelo de ensino, que os estimule, este está ultrapassado. Tenho uma colega que diz que há a escola da manhã e a escola da tarde, que os alunos são diferentes, e depois tenho colegas que dizem que há três escolas, há a escola da manhã, há a escola da tarde e há a escola da Ana.
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