Entre Babel e o Código: uma questão de diversidade e justiça linguística

“Porque uma tecnologia que ignora a diversidade não é neutra — é incompleta!”

No início era a palavra. Hoje, são os dados. E quem controla os dados, molda a linguagem. A emergência de sistemas de inteligência artificial que produzem e interpretam texto está a transformar silenciosamente o modo como comunicamos, aprendemos e pensamos. Mas nem toda a linguagem tem o mesmo peso neste novo mundo algorítmico. O que se repete com mais frequência passa a norma. O que é menos visível torna-se ruído. E quando uma variante linguística é tratada como exceção, abre-se caminho para uma forma de desaparecimento que não sendo intencional, é estrutural.

Não se trata de afirmar uma variante contra outra, nem de disputar espaços com base em métricas de autoridade. Trata-se, isso sim, de compreender que a diversidade linguística é um valor civilizacional. Quando os sistemas digitais ignoram ou corrigem automaticamente formas legítimas de falar e escrever, não estão apenas a simplificar: estão a reduzir a complexidade do mundo a um modelo único, a uma lógica estatística que confunde frequência com legitimidade.

A questão que aqui se coloca não é a da superioridade de uma forma de falar sobre outra. É a do direito a existir em igualdade de condições num ecossistema digital que tende, por natureza, à homogeneização. Uma escola que se vê obrigada a adaptar-se ao que a máquina considera correto, um estudante que vê o seu texto “corrigido” para um registo diferente do seu, um educador que precisa de justificar normas que sempre conheceu — todos eles enfrentam, cada vez mais, este tipo de fricção silenciosa.

Por isso, o que está em causa não é a defesa de uma variante, mas sim a promoção ativa da equidade linguística num mundo cada vez mais automatizado. A inteligência artificial deve servir a diversidade, não anulá-la. Deve aprender com a pluralidade, não impor coerência à custa da diferença.

Este é um desafio que interpela diretamente o setor da educação. As escolas não podem ser apenas consumidoras de ferramentas digitais; têm de ser também espaços de literacia crítica, onde se ensina a questionar o que parece neutro. Os educadores não podem ser apenas utilizadores de tecnologias; devem ser agentes de uma pedagogia que valorize a diversidade linguística como um recurso, e não como um obstáculo.

Garantir a presença equilibrada das diferentes variantes linguísticas nos sistemas de IA é uma responsabilidade partilhada entre instituições, governos, investigadores e comunidades. Significa investir na produção de dados representativos, construir modelos respeitadores da diversidade, formar profissionais capazes de reconhecer e contrariar enviesamentos.

Não se trata de nostalgia nem de resistência à inovação. Trata-se de justiça. Porque uma tecnologia que ignora a diversidade não é neutra — é incompleta!

Numa sociedade que se quer global, inclusiva e plural, essa incompletude não pode ser o novo normal.

Jorge Santos-Silva | Investigador e doutorando do Centro de Estudos Globais da UAb Porto; Professor de Estratégia do IPAM Porto.

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